1 Aqui há uns semanas um cavalheiro bem educado veio ter comigo na rua e logo após se ter confessado “ouvidor” da serie de podcast que tenho vindo a fazer no Observador, passou a um reparo: “mas é pena ser tão à direita, quase não há ninguém de esquerda”. Sorri interiormente com o “tão”, lembrei-lhe nomes fora do “tão” e da própria direita: “ah mas esses não são bem de esquerda…” Ignoro segundo qual critério tais nomes não eram – suficientemente? – de esquerda; ignoro de que instância superior poderia surgir “o” árbitro nacional ou internacional capaz de situar a correcta morada política dos protagonistas que o desgostavam, a ponto de não lhes merecerem guarida no seu universo.

O que me pareceu foi que para aquele meu inesperado interlocutor eu estava a sair fora do perímetro demarcado que a esquerda consente à direita. Sabemos como se estimam – os da esquerda e os da direita a quem a ela, esquerda, atribuiu direito de cidade; sabemos como se entreajudam, decifram confidências e trocam estado de alma ao jantar, sentados à mesma mesa. Há exemplos, conhecemo-los: são os “autorizados úteis”. Permitem à esquerda o uso da etiqueta do “pluralismo” mesmo que o uso tenha caído em desuso. Em troca os autorizados auferem do cartão que só a esquerda tem o exclusivo de carimbar, da “direita com quem se pode conversar”.

Deus os abençoe, que eu não.

2 Vem isto a propósito do tonitruante ruído público que envolveu a publicação de um livro que a esquerda tomou como uma invasão-ocupação do seu terreno. O ruído permite a dúvida: tê-lo-iam suspendido se pudessem? O ataque feroz, agitado, rápido como o som, disparou cedo, mas a ira trazia o rabo de fora: percebia-se que a grande maioria dos irados não lera o livro: os autores “papagueavam”, nunca se explicando porque “papagueavam” em vez de naturalmente escreverem; “não havia mulheres” neste lote de intrusos quando pelo contrário havia textos assinados no feminino e mais do que um; e também não havia algumas das matérias contra as quais a fúria articulista vituperava — não constavam daquelas páginas mas era preciso dizer que sim, que estavam lá: todas as armas eram bem vindas – mesmo as falsas, mesmo as ignorantes – contra a defesa de uma visão de “Identidade e Família” dissonante do ar tempo nacional e internacional. Mas bem encaixado num modelo de sociedade já definitivamente banido como lixo, dentro e fora das nossas portas: a publicação do livro era uma afronta às “conquistas” culturais em matéria de costumes, a sua circulação esbarrava com um sinal de trânsito proibido.

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As vendas têm sido ciclópicas.

3 Como sempre ocorre com todas as obras que resultam de um naipe de distintos autores e consequentemente de opiniões, visões, interpretações diversas, o livro é desigual e desigualmente interessante. Não é dele que me ocupo (seria incapaz de subscrever alguns dos textos, partilhando porém ideias e preocupações expressas noutros), ocupo-me de algo que vem antes do conteúdo do livro e se situa para lá dele, que é o que me interessa aqui: o seu direito a existir. O resto tem de vir depois. O que aconteceu foi um acto de condenação publica concretizado com a segurança dos “proprietários” que com cada vez mais ácida desenvoltura pontuam e actuam. Desta feita bastou tocar três simples notas – a do acinte, a da acusação, a da ignorância – ampliá-las à exaustão e aí estava o coro do pensamento único, em canto afinado e polifónico. Mas….em nome de quê – e num Estado de direito – é que um grupo de portugueses não pode expressar a sua preocupada opinião quanto a temas que considera de índole civilizacional mais que cultural, chamando-os publicamente a uma mais séria reflexão? Sabendo aliás que o seu gesto interpela uma parte do país que em vez de se sentir “controversa”, se sente perplexa? Que acompanhando o galope da legislação em temas fracturantes, testemunhando o que se passa nas escolas de filhos ou netos, ou afligindo-se com a desqualificação quase sarcástica da família natural, não se acha “chalupa” mas antes atónita?

Ou talvez preocupada, entristecida, indignada, sozinha. (escolham o adjectivo).

4 Não é senão este comportamento declaradamente censório que me traz, deixando aqui o meu protesto assinado. Dispenso-me por isso de algo bem mais desafiador como seria discutir o conteúdo do referido livro, ou evocar uma e outra vez a nossa matriz, impressa há dois mil anos na civilização ocidental, judaico-cristã que nos foi berço. E pode-se partir de outra geografia territorial, política, cultural, civilizacional se é dela que deriva o que fomos e somos? E daquilo que fruto dela escolhemos, fizemos, elegemos, defendemos? Julgo que não mas há quem pense que sim, fazendo tábua rasa da responsabilidade dessa herança e escrevendo outros mandamentos em novas tábuas de lei. Também me dispenso (mas tomei boa nota da coincidência) de analisar palavras de um dos homens citados com gosto pela esquerda radical, Francisco, o Papa. Disse ele num Congresso recente – 1 de Março deste ano – com a simplicidade da evidência que “ hoje, o perigo mais horrível é a ideologia de género que anula as diferenças”. E há dias, num documento do Dicastério da Doutrina da Fé, constava uma frase sua falando de “colonização ideológica” a propósito de algo que Francisco nunca escondeu considerar que atenta contra a dignidade humana,

5 Nenhuma sociedade subsiste com saúde, seriedade, critério, energia, se os seus — da elite ao povo — não acompanharem as escolhas do seu país e o rumo que ele segue, agindo, intervindo, concordando, discordando. Entre nós, metade do país em vez de privilegiar a discordância como ponto de partida e (desejada) chegada, elegeu a apropriação, a censura, o cancelamento ao direito de cidade. Com uma naturalidade estarrecedora anulou um modo de pensar, substituindo-o por um pensamento único inscrito num novíssimo mapa de comportamentos. A outra metade ou acata as novas coordenadas ou é publicamente acusada de pecados que não tem e vexatoriamente arrumada num limbo.

6 E aqui chegados, chego eu ao mais doloroso de lembrar, mas a seriedade é um imperativo. E manda a seriedade que termine com a constatação que se impõe e que na verdade é um forte libelo: se a tentação do cancelamento acontece todos os dias e só tende a piorar ;se a feroz imposição de cartilhas faz lei; se o êxito do politicamente correcto veio para ficar, pergunto: quanta culpa, quanta preguiça, quanto deixa andar, quanto faz-de-conta em quem hoje grita aqui d’el rei? Do centro-direita e da direita, às elites, à sociedade civil, a academia, quanto amolecimento e quanto silêncio? Quanta responsabilidade em suma, de uns e outros, neste estado de coisas? Excepções? Claro. Mas extraordinariamente contam-se pelos dedos.

É verdade, não se antecipam desfechos neste feio combate. Mas a culpa não está de modo algum, num só lado.