Houve a questão da cama. Por causa de um catálogo vindo sabe-se lá de onde na sua capa dura, ao toque quase plástico, em cor de cocó de bebé que andasse mal da barriga. Porém, uma vez aberto, de uma riqueza fotográfica a preto e branco feita do acetinado das folhas onde brilhavam móveis estilo isto e estilo aquilo numa fartura barroca em moderna talha de máquina. Enfim, aos meus olhos infantis um desatino do luxo. E eu adorava a coisa que ninguém sabia quem tinha trazido e para lá andava em casa ao mais ingrato Deus dará.

A minha credibilidade estética em pequena era, como direi, fraca. Em casa, se andasse vestida de odalisca ou sevilhana, andava feliz. Usava uma profusão de pechisbeque da cabeça aos pés segundo o critério quanto maior e mais brilhante, melhor. E assim que aprendi a desatar o laço duplo das botas ortopédicas, fugia para cima de sapatos de salto alto. Fazia muito sarau dançante. Gastava o espelho em ensaios de vaidade teatral. Mas com limites, não me passava pela cabeça ir naqueles preparos para a rua ainda que pudesse ocultar um anel descabido nos dedos. Saía sempre muito composta. Bem penteada, de carrinho de bebé com o chorão dentro a dormir descansado, e de carteira ao ombro. Não se enganem… Não era por isso que andava de bicicleta mais devagar ou deixava de subir às árvores ou de arranjar mil maneiras de acabar com mercúrio ou tintura de iodo nos joelhos.

Já contei que a minha casa era grande e velha. Alguma coisa andava sempre a ser reparada, se não fosse o telhado era uma parede, se não fosse a parede era uma porta empenada. E os móveis eram igualmente velhos, não estalavam de fantasmas, só do cansaço de existir ano após ano – doíam-lhes as juntas. E quando era preciso mudar o que quer que fosse era ir ao depósito, lá em casa mesmo, trazer o que lá estivesse, dar-lhe ar a toque de lixa, colar, ou encerar, pintar, lacar, ou estofar e forrar de novo. Mas isso só acontecia muito de quando em vez, quando a minha avó sentenciava «esta sala está uma vergonha, isto não pode continuar». Assustadoras palavras mágicas: talvez trouxessem uma máquina que gritava mais do que as Fúrias enquanto estrafegava o chão. Ou sumissem cortinados e outros viessem do nada, ou do rosa se fizesse verde.

A minha cama tinha sido da minha mãe e posso jurar que ela não foi a primeira ocupante. Era assim com tudo. Das peças de tecido fazia-se roupa, a roupa modificava-se, e das sobras pequeninas fazia-se roupa para as bonecas. Era um tempo de costureiras e modistas, que parecendo ser a mesma profissão, é profissão muito diferente. Era esse tempo para mim. Para as minhas colegas de colégio, até para as primas afastadas, era o tempo do pronto a vestir, das socas e das chinelas de pau iguais às da Anita, bonitas de morrer, e o tempo de viver em lindos apartamentos com estantes feitas de cubos esvaziados de plástico colorido e alcatifas fofas num chão que não gemia um único ai. O tempo das cozinhas com fogõezinhos que pareciam de brincar e sem o escuro de uma chaminé por ali acima direita ao infinito sideral como a da casa onde vivia. O tempo das cozinhas quase de bonecas em corredor de comboio. E das camas a estrear.

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O meu avô fazia-me algumas vontades – achava graça ao meu deslumbramento com os vidros e contas da modernidade e ainda mais à fascinação kitsch. A minha avó, muito desempoeirada de linguagem, não achava graça alguma e dizia em alto e bom som que eu tinha uma estética de cabaret, um desassossego de folhos, plumas e lantejoulas a que somava o gosto pelo plástico dos novos candeeiros e a adoração das alcatifas.

Ora, no seu aniversário, o meu avô presenteava. E perguntava-me o que queria de presente – porque sabia que os meus desejos oscilavam entre o desportivo radical e o estapafúrdio, e se ele não estivesse por mim, estava sozinha. O desejo de aniversário era sagrado. Podiam ser uns patins antes da hora. Um baloiço no meio da parte coberta do quintal, em pleno alpendre, para voar alto em dias de chuva. Um candeeiro de tecto laranja transparente, com fio de telefone para subir e descer. Ou naquele único ano megalómano, zás, uma mobília de quarto. Ou melhor, uma cama. Menos, uma cabeceira apenas – porque a cama e o colchão que acompanhavam a cabeceira na fotografia de cetim do infame catálogo eram redondos. Disso não gostei, achei que ia ficar tonta porque sempre enjoei e ver redondo era sentir-me a andar à roda.

A cabeceira era uma bela concha em formato de vieira gigante, cor de marfim patinado com uns filetes dourados, fininhos, fininhos, envelhecidos a craquelée e inclinava-se suavemente: toda a parte superior nem tocava a parede. Seria uma coisa hollywoodesca se na altura conhecesse a palavra. E faziam de solteiro e de casal. E podia aplicar-se a uma base a direito que não desse tonturas, sim senhor, com certeza, entrega e montagem, sem atrasos. Tudo em segredo telefónico nas costas da minha avó, e depois, entre nós, silêncio de conspiração. De vez em quando: está quase? Está quase. É hoje. Não é hoje. Depois, quando chegou, estratégia.

Quando a minha avó voltou para casa depois de ir visitar a sua irmã, já a cabeceira-concha tinha sido entregue e estava montada, e o quarto arrumado sem vestígios de qualquer intervenção. Ó aparição marinha e maravilhosa, imensa como o mar de onde surgira. Aparecera, pronto. Estava ali. Existia. Que sorte, que sorte ter as paredes em azul e que sorte ainda maior, desta vez, viver numa casa velha de tectos muito altos.

Pensei que o meu maravilhamento ia ser fuzilado pela metralhadora escondida no preto ao centro dos olhos verdíssimos da minha avó. Mas escapei ilesa. As balas foram todas na direcção do herói que as aguentou.
– Tudo o que esta criança precisa é de uma cama de casa de meninas.
– Cama de casa de meninas?! Francamente… Isto é história da arte, é Botticelli, é o nascimento de Vénus.
– Não se enterre que vai dar tudo ao mesmo.

A autora escreve segundo a antiga ortografia