Há políticos que querem rever a Constituição (CRP) para se poderem deter cidadãos por decisão administrativa sanitária; isto é “administrativizar” detenções.

É verdade que admitem o recurso aos tribunais, mas o cidadão detido está em clara desvantagem para o fazer, e para defender os seus direitos. Mais: fundamentar detenções em doenças contagiosas permite os mais graves abusos. Se, com as normas constitucionais, em vigor foram cometidos gravíssimos abusos nos últimos quase três anos, com a abertura que visam vão ocorrer abusos ilimitados, como passo a explicar.

Desde logo, todos temos doenças contagiosas (por exemplo, respiratórias, como gripes e constipações) várias vezes ao longo do ano, e da vida; assim, passaria a ser possível a um burocrata público da saúde invocar até uma constipação para deter um cidadão; e nem os assintomáticos escapariam, se tais burocratas escolhessem um teste que eles decidem que sugere uma doença contagiosa, atual ou eventual, ou só a proximidade a algum infetado. A proposta de lei de emergência sanitária conhecida não tem esta abertura; mas a CRP deixaria de impedir que uma maioria parlamentar alterasse uma tal lei para passar a acomodar qualquer detenção com este motivo.

Depois, factos como tosse e espirros podem ser usados como indicadores de doenças contagiosas, mesmo podendo ter outras causas, e serem usados por autoridades de saúde, invocando precaução ou prevenção, para deter cidadãos.

A recente experiência tem mostrado que não faltam burocratas públicos da saúde com narrativas bem-sonantes, como salvar vidas, para impor restrições à vida dos cidadãos com base apenas em opiniões ou correlações, sem sólido e reconhecido fundamento científico: quando não existiam factos, diziam que podia vir a haver, e havia que precaver ou prevenir. Não bastam narrativas bem-sonantes. Os burocratas públicos em geral sabem muito da sua especialidade e técnicas; mas raramente têm mais do que uma visão setorial, tendem a sobrevalorizar as suas atividades e áreas técnicas, e poucos dominam o Direito. Mais: tendem a achar que têm legitimidade para – devem mesmo! – impor aos cidadãos (uns iletrados, claro) as suas preferências e escolhas sobre a vida de cada um e em sociedade. Isso é incompatível e inaceitável num Estado de Direito Democrático, como o que a CRP estabelece.

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Também muitos profissionais no setor da saúde têm beneficiado repetidamente de apoios de empresas farmacêuticas; partilham interesses na promoção de medicamentos. Só por extrema ingenuidade ou má-fé se pode dizer que quem recebe de farmacêuticas vai tomar posições que contrariem as suas expetativas de proveitos. E veem-se os media a promover ou a dar continuado palco mediático a influenciadores, sob a capa de “os especialistas”, até depois de serem expostos conflitos de interesses. Pior: numerosos jornalistas deram amplo palco mediático aos processos que vários influenciadores moveram contra colegas experientes e respeitados, por delito de opinião; mas só de passagem os media noticiaram o arquivamento de tais processos.

É necessário notar que a larga maioria dos jornalistas e dos media abandonaram a sua tradicional postura de escrutínio dos poderes, e se tornaram em seus acessórios, visando impor um “consenso social”, repetindo narrativas bem-sonantes (por exemplo, “fique em casa, salve vidas”, desprezando os custos) e menosprezando e deturpando os factos que as contrariam (como as decisões do Tribunal Constitucional, o excesso de mortalidade desde 2020 e as suas causas, ou a situação em países que seguiram outras políticas); até foram polícias de costumes, perseguindo pessoas e alimentando um regime de medo geral. Nada faz prever que na próxima crise tais jornalistas defenderão os cidadãos. É até de prever que estes jornalistas invocarão a revisão constitucional como “lição aprendida”, para implementar e apoiar o regime repressivo então criado.

Esta crise mostrou ainda a adesão de atores políticos, e governantes em especial, a narrativas catastrofistas, impondo restrições mais para se protegerem de acusações de terem deixado pessoas morrer por COVID-19, do que para defenderem globalmente e com proporcionalidade a saúde da população. O excesso de mortalidade desde 2020, os efeitos secundários de injeções apressadamente elaboradas e aprovadas, a degradação da saúde mental e da educação das crianças mostram que desprezaram os custos das suas decisões. Foram populistas, e usaram a diabolização e as imagens bélicas para induzir e manter o medo nos cidadãos, e assim afastar qualquer manifestação de dúvida ou oposição. Fugiram a considerar as políticas menos restritivas dos países nórdicos, e da Suécia em particular, hoje com menor excesso de mortalidade. Ao fechar as pessoas em casa, em vez de promoverem formas de vida mais saudável para resistir ao novo vírus, vieram agravar disfunções, como a obesidade, e inviabilizar o diagnóstico e tratamento de doenças graves. Apostaram na solução mágica “as vacinas” e a inoculação geral, que nem trouxeram o fim da doença, nem a imunidade de grupo, nem a redução da reinfeção ou transmissão que anunciaram – mas trouxeram lucros enormes às empresas farmacêuticas que as produziram e venderam, e às quais não aplicam impostos por lucros extraordinários.

Com estes precedentes recentes, é fácil prever que um governante pode pressionar um qualquer mais carreirista burocrata público da saúde para satisfazer um desejo de afastar da vida pública um cidadão incómodo, ou mais, invocando a prevenção por uma doença contagiosa que se lhe diagnostica com um teste obscuro, ou nem isso. Um ou mais cidadãos ficam assim detidos, sob suspeita social generalizada e perdendo uma garantia de respeito pelos seus direitos e liberdades. Assim limitados, terão de ser eles a pagar a advogados para irem a tribunal repor os seus direitos. Só cidadãos com uma vida confortável, uma pequena minoria, podem reagir de imediato. Os efeitos podem ser irreversíveis e a reposição de direitos e de despesas, a ocorrerem, podem demorar.

É típico das ditaduras usarem a narrativa da proteção das pessoas para lhes retirarem direitos e liberdades. Estas restrições até começam com boas intenções, mas facilmente resvalam para a repressão de cidadãos que incomodam os dirigentes e para a conversão dos cidadãos em súbditos dos governos ou até dos burocratas públicos. Isso é inaceitável em democracia.

Se é necessário reagir muito depressa a epidemias, e se há sólido fundamento científico que mostre que são eficazes as restrições à livre circulação das pessoas, então dotem-se os tribunais da capacidade de atuar eficaz e rapidamente face a tais situações, com acesso a juízes a qualquer hora do dia, e em qualquer dia do ano, devidamente assessorados por especialistas experientes e independentes. Mas não se resolva um problema do Estado dando poder de detenção a burocratas e a políticos, e retirando direitos e liberdades aos cidadãos. Se o fizerem, Portugal deixa de pertencer ao clube das democracias.