Um cidadão até estava de acordo com Alexandra Leitão, com o PS, com a esquerda. Também achava que não se pode, ou pelo menos não se deve – e talvez aqui resida toda a diferença –, dizer que determinada etnia é mais burra ou preguiçosa do que as outras, num lugar como a Assembleia da República. E que, portanto, se algum deputado, por seu triste entendimento do mundo, o decida fazer, a Presidência da Assembleia da República pode – e talvez deva – chamar de pronto à atenção para o facto de qualquer observação daquela natureza ser injuriosa, ofensiva e totalmente contrária ao espírito da Constituição da República Portuguesa e dos tratados internacionais de que essa mesma república é signatária. Assim se evitaria abrir uma porta fácil aos célebres “discursos de ódio”, e, já agora, eventuais embaraços diplomáticos com países amigos e aliados.

Mas, depois, encheram-lhe as redes sociais de tanto “não, não pode”, que o conseguiram fazer mudar de ideias.

Entre a humildade de um Presidente da AR que tem o cuidado de dizer “a meu ver, pode”, e a certeza dogmática dos catequizadores de bancada (já não bastavam os treinadores e, oh, saudade, os especialistas em vírus e vacinas), ou, dito de outro modo, entre liberais e aqueles que tudo querem regular, ressalta à evidência tratar-se de um “parlamento”, onde as demais bancadas podem – e aqui certamente devem – contestar e desmontar o que outra possa dizer de contrário aos seus princípios e convicções. Não é necessário ir a correr para um Presidente da AR paizinho, a apontar como quem diz: “aquele menino disse um palavrão”. Afinal, a tirada de Ventura foi tão absurda, tão despropositada, tão gratuita, tão facilmente desmontável, que o próprio se deve ter arrependido na hora de a ter dito. (Mas temos algum problema com os turcos? Alguém tinha qualquer espécie de impressão acerca da capacidade de trabalho dos turcos antes disto? Valeria ao Chega meio voto este bitaite saído dum bate-boca de uma tasca em Tebas?) Até transformarem isto num caso e lhe permitirem sair duma trapalhada completamente desnecessária como mártir da liberdade de expressão.

Depois, é claro, faltava a reacção dessa grande mesa de café chamada redes sociais – como é que havíamos de viver sem ela?

Ainda mal o episódio se tinha dado e já os feeds de Facebooks, Instagrams e Xises, se enchiam de quadradinhos (pretos, claro, não fosse alguém não sentir o peso do drama) clamando que “não, não pode”. E, ora bem, era para eles que o cidadão gostaria, hoje, de chamar à atenção.

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Para que é que isto serve, exactamente? Estes “não, não pode”, estes “não passarão” (viu-se), estes “cala-te, ó facho”, enfim estas variantes do “ele não”, começado no Brasil (e que, como se viu, também sortiu imenso efeito)? Algum dos vossos amigos, seguidores, stalkers, o que quer que seja, lê aquilo e pensa: “ah, pois é. Eu, por caso, até achava que se podia, mas agora que te leio dizer que ‘não pode’, penso epá, ‘tá bem visto: não pode.” É para aliviar a consciência? “Já fiz o meu papel. Já disse que não se podia. Sou um grande defensor da democracia”? Sobretudo quando já uma, duas, três pessoas disseram o mesmo, publicaram a mesmíssima mensagem, o que é que acham que a vossa acrescenta, exactamente? “Epá, já 23 pessoas no meu Insta tinham dito que não se pode, mas, agora que o Gervásio disse, é que eu estou a parar e a pensar: epá, tu queres ver que realmente não se pode?”. Se querem mesmo falar do assunto, porque é que não se dão ao trabalho de escreverem mesmo qualquer coisa? De produzirem um – como é que se chama? – raciocínio? De tentar convencer alguém? De desmontar o argumento do adversário? De explicarem porque é que não se pode, em vez de simplesmente, papaguearem o mantra da semana? O mandamento? A regra? Agitarem a bandeirinha distribuída na manifestação? Ao menos os românticos do Maio de 68 diziam que era proibido proibir – quão distante está desses dias a esquerda de hoje?

Falta dizer que muitos destes grandes educadores do povo são os mesmos que se gabam de terem “removido” todos os amigos “cheganos”. Portanto, estão a falar para quem? E aos poucos, indignação a indignação, causa a causa, refrão a refrão, o exercício, previsível e inútil, mais previsível e inútil se torna, e mais passa por mera exibição de vaidade, sinalização de virtude, caça ao like, frívolo cartucho de futilidade que, na melhor das hipóteses, não serve de nada e, na pior, desperta exactamente a reacção oposta à que supostamente pretenderia.

Talvez Aguiar-Branco tenha uma leitura demasiado permissiva do regimento da Assembleia da República. Mas chegámos a este curioso ponto de evolução da sociedade humana em que os que se dizem democratas proíbem e os que permitem se arriscam a passar por fascistas. Por todo o Ocidente, o descontentamento que alimenta partidos como o Chega tem de ser resolvido com diálogo, debate, argumentação, enfim, com as regras definidoras da liberdade e da democracia. Se será suficiente? O cidadão acredita e deseja com todas as suas forças que sim. Agora, haverá um só descontente a menos por lhe espetarem na cara com mais um “não pode”, um “não passarão” ou, melhor ainda, aquele selo na boca do “cala-te ó facho”?

Não me podam.