Ainda antes das eleições dirigi aqui uma carta aberta a Pedro Nuno Santos (PNS) e Luís Montenegro pedindo que se respeitasse os resultados das eleições e que o derrotado desse condições mínimas de estabilidade política ao vencedor. A vitória da AD sobre o PS foi mínima e o empate técnico (PS e PSD) persiste, mas há uma clara maioria de direita parlamentar o que dá maior legitimidade para ser o PSD e CDS a governar (não por a AD ter mais 2 votos que PS, mas porque o PS nunca conseguiria formar governo). Desde essa altura, em que PNS afirmou que era quase impossível aprovar o orçamento, até à posição atual onde o PS afirma não ter linhas vermelhas nas negociações, houve uma evolução positiva em termos de estabilidade política. Estou convencido que saiba o PSD tratar com dignidade o PS e estar aberto a algumas das suas propostas, que não será difícil obter a abstenção do PS, suficiente para aprovar o Orçamento.

Aquilo que me preocupa mais é a atual perversão do espírito das regras orçamentais. As regras e instituições orçamentais, definidas na Constituição da República Portugesa, na lei de enquadramento orçamental e no regimento da AR, não são perfeitas, mas têm uma lógica razoável. Simplificando, e ignorando as interações europeias, temos dois momentos essenciais: primeiro a lei das grandes opções que define tetos plurianuais de despesa vinculativos para o ano seguinte. Mais tarde a proposta de lei do Orçamento de Estado dá entrada na AR. Em sede de debate orçamental, os partidos fazem várias  propostas de alteração nas receitas e nas despesas, corporizando políticas públicas que afetam a vida de cidadãos e empresas e que, dado um cenário macroeconómico, se traduzem na previsão do saldo orçamental e da dívida pública no ano seguinte.

Aquilo a que assistimos atualmente é uma perversão destas regras e da lógica do processo orçamental. A existência de um governo minoritário, que não tem garantias de aprovação das suas propostas, leva a dois tipos de movimentos.

Por um lado, os partidos de oposição querem “governar” a partir do parlamento. Fazem propostas de aumento de despesa  (e.g. aumento de suplementos de risco para forças de segurança) ou de diminuição de receita (redução de taxa de IVA de eletricidade, redução de taxas de IRS, abolição de portagens nas ex-SCUT etc). Claro que o mínimo denominador comum de coligações negativas parlamentares é sempre o aumento do défice orçamental. Várias dessas propostas, por exemplo a baixa das taxas de IRS, estão em clara violação da lei travão (opinião que julgo seria maioritária no tribunal constitucional caso fosse suscitada), apesar dos pareceres dos técnicos da Assembleia da República como já tive ocasião de aqui argumentar.

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Por outro lado, e como reação, o governo vai tentando legislar por decreto-lei com o mínimo recurso ao parlamento, mesmo sabendo que está sujeito a apreciação parlamentar dos seus decretos-lei. Em matérias, como as fiscais, em que necessita de autorizações legislativas, o governo apresenta propostas de lei de autorização legislativa, na expectativa de evitar ter de as negociar. É o caso atualmente das propostas de lei de autorizar o governo a  reduzir as taxas de IRC e a reduzir as taxas de IRS para os jovens (esta uma proposta claramente inconstitucional (1) ).  A intenção do governo é evitar que isto esteja no OE, e não introduzir nenhum artigo sobre esta temática no OE para não ter de o discutir. Porém, na eventualidade da autorização legislativa ser aprovada, as coisas não são assim tão fáceis para o governo. Nada impede que os partidos apresentem, em sede parlamentar, propostas de alteração ao OE diferentes sobre estas matérias que sejam votadas e que poderão ser aprovadas.

Passámos dos cavaleiros orçamentais, normas que nada têm a ver com o OE mas estão lá, para as toupeiras orçamentais, normas fiscais que deviam estar lá mas não estão.  Se os deputados querem justificar a sua existência, o seu trabalho e o seu salário não aprovem nenhuma autorização legislativa e obriguem o governo a negociar no parlamento o orçamento como é próprio e natural de um governo minoritário e, se não for pedir muito, apresentem propostas com impacto orçamental apenas em sede de orçamento de estado.

  1. A constituição da república portuguesa (CRP) é clara sobre o imposto sobre o rendimento (numero 1 do artº 104) afirmando que é único e progressivo. Um imposto é progressivo quando a taxa média desse imposto aumenta com o nível de rendimento (ver P. Pereira et al. Economia e Finanças Públicas, 6ª ed. 2022, Escolar Editora). Será preciso explicar porque é que a proposta de lei do “IRS jovem” viola a progressividade e a CRP?