Debate sobre educação na Assembleia Municipal de Lisboa, dia 2 de Novembro, por iniciativa do PCP e oradores convidados por todos os partidos. No conjunto, uma sopa turva e morna de intenções pela escola milionária que as expectativas plantaram nas cabeças dos educadores e que o país não pode pagar. Uma constatação incapaz de sacudir a basáltica perseverança do progresso. “A escola deve ser geradora de cidadãos responsáveis”, postulou uma convidada. “O papel da escola é retirar as crianças à família para as fazer crescer na comunidade”, decretou Jorge Sarmento Morais, chefe de gabinete do ministro João Marques da Costa e representante enviado pelo Ministério da Educação. Auxiliado por um computador, projectou desenhos. O círculo virtuoso do dr. Morais estava dividido em três partes, cada uma atribuída ao seu elemento alquímico: a “escola”, a “comunidade”, e a nunca suficientemente insultada possidoneira da “cidadania”. À família não era reservada parte alguma. Como explicou, o objectivo era apoderar-se de cada criança em estado bruto para a transformar num luzidio “cidadão da urbe e da cidadania”. Vamos examinar estas declarações e apurar a partir delas um sentido comum.
A vontade de fabricar “bons cidadãos” (ou cidadãos “responsáveis”, como lhes chamou a primeira frase) não nasceu agora. A Mocidade Portuguesa, de Salazar, durante o Estado Novo, era o que tentava fazer. E a Juventude Hitleriana, na Alemanha nazi; ou a Balilla, de Mussolini; todas elas controladas pelos respectivos ministérios da Educação. E os Pioneiros, na União Soviética (ainda hoje sobrevivem Pioneiros em Cuba e na Coreia do Norte). Como se vê, é próprio dos totalitarismos a procura por um “homem novo”. É verdade que organizações deste tipo também existem nalgumas democracias; mas onde elas nunca falham é em Estados totalitários. Não se conhece um único, singular, solitário, em toda a história do mundo moderno que tenha dispensado uma estrutura de juventude concebida para moldar “bons cidadãos”. No Portugal de hoje, o totalitarismo está na esquerda. É público e notório que o Ministério da Educação está capturado há décadas pelo PCP. E também, mais recentemente, pelo Bloco, através dessas “plataformas” e “colectivos” das “causas”. Independentemente do ministro que em cada momento veste o fato, o Ministério da Educação é um organismo autónomo e com vida própria. Um Estado dentro do Estado. Com o PS no governo, a convivência é suave.
De maneira que o PS, ou seja, a esquerda em peso, ou seja, o nosso querido regime, decreta agora os mais altos propósitos de “retirar as crianças à família para as fazer crescer na comunidade”. Qual comunidade? Obviamente, não é a comunidade que existe, composta (perdoem-me a insolência) por famílias. Qual será, então, essa comunidade a que o dr. Sarmento Morais se refere? É a comunidade que, a pouco e pouco, se vai encaixando nos moldes que interessam ao Estado. Não queremos.
Não, não queremos. Quem molda a sociedade são as suas próprias forças, internas ou externas, que vão mudando com os tempos e as circunstâncias. Não, não é o Estado que molda a sociedade. Pelo contrário, o Estado deve adaptar-se à sociedade. Talvez hoje seja essa a grande diferença entre esquerda e direita: a esquerda acredita que o Estado é o único agente legítimo de mudança na sociedade. Uma convicção presunçosa e brutal que produziu sempre revoltas sangrentas. Significa a abolição do indivíduo enquanto ser único e irrepetível, mutilado de sentido crítico, inteligência, imaginação e criatividade. Significa a perda para o indivíduo, privado das liberdades intelectuais e afectivas, as primeiras e mais básicas de todas as liberdades. E significa a morte prenunciada da sociedade em si mesma, destituída da motivação e do engenho dos indivíduos, que afinal de contas estão na origem de tudo o que a faz evoluir.
A adaptação do indivíduo às regras da comunidade deve ser um processo que decorre apoiado no interior da família, até à emancipação dele (e a desejável criação de mais uma família). É ali que ele aprende a relacionar-se com quem gosta e quem não gosta; a engolir quem pensa de maneira diferente, contrária, ou incompatível; a enfrentar e sobreviver à frustração. Sobretudo, o poder dos valores fica disperso: cada família cultiva a moralidade que quiser. Não podemos aceitar que o Estado detenha monopólios económicos e, por maioria de razão, não podemos tolerar que o Estado produza e detenha o monopólio da moralidade e dos valores sociais. Como responder então ao dr. Sarmento Morais e aos incríveis propósitos do Ministério? Explicando-lhes calmamente o seguinte: retirar os filhos às famílias não se torna aceitável por estarmos em democracia. Pelo contrário. Uma democracia define-se, precisamente, por não querer retirar os filhos às famílias para os inserir à força na comunidade.