Dois deputados “independentes”, eleitos pelas listas do PS à Assembleia Municipal de Lisboa, quiseram incluir a história dos ciganos nos currículos escolares. O papel que entregaram falava em “comemorar a cultura e a história do povo cigano”, e em “lutar contra o preconceito e a discriminação sentida por essa comunidade”. Já se percebeu que não existe em Portugal esquerda mais fanática do que estes “independentes”, criaturas puríssimas nunca tocadas pelas hierarquias dos partidos, o que lhes traz uma santimónia que Deus nos acuda. Cada palavrinha é um vapor de virtude autoritária. Não lhes pareceu relevante informar quais as matérias que propunham retirar dos currículos para neles incluir a história desta espantosa civilização. Mas há pontos mais importantes, visto que lhes interessa falar de ensino, de tradição, de cultura, e de preconceito.

Com base numa querela sobre a horrível disciplina de Cidadania, o Estado decidiu substituir-se aos pais da família Mesquita Guimarães, de Famalicão. Esse nobre propósito justificou que despejasse sobre eles o tribunal, os recursos das sentenças, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, e todo o armamento burocrático e repressivo a que um estado pode recorrer sempre que decide aliviar um cidadão dos seus direitos, liberdades e garantias.

O mesmo Estado não teve qualquer interesse numa rapariga de 15 anos a quem dispensou, em 2017, de frequentar a escola e terminar o ensino obrigatório. Esta miúda de Avis foi abandonada à “tradição da cultura cigana”, segundo o despacho de Joana Gomes, juíza da comarca de Portalegre, que a considerou “desmotivada para frequentar a escola” e munida das “competências suficientes para desenvolver uma actividade profissional”.

Que espécie de “actividade profissional” espera a miúda de 15 anos? O despacho responde placidamente: ajudar a mãe nas tarefas domésticas. É este o “caminho recompensador” que o despacho de Portalegre aponta à miúda, no sentido da “integração social no seu meio de pertença”.

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E que meio é este, a que a justiça reconhece a “pertença” de uma adolescente, em 2017? Talvez seja viver num acampamento, sem casas de banho, sem privacidade, sem condições de espécie nenhuma. Talvez seja levantar-se às quatro ou cinco da manhã para ir vender camisolas na feira. É um meio em que ela tem tudo para se realizar, posto que a honra das famílias ciganas está centrada no comportamento das raparigas, que se devem manter virgens até ao casamento, às vezes celebrado antes sequer delas atingirem a puberdade. Uma pessoa olha para isto e cai pasmada, como é que não ocorreu a nenhuma destas almas que, em Portugal, o “meio de pertença” de uma miúda com 15 anos é na escola.

Onde andou a esquerda? Onde andaram as feministas, que ninguém as ouviu emitir um som? Onde andou a bendita comissão de “protecção”, que tão prontamente se mostrou disponível para arrancar aos pais dois rapazes felizes, educados e excelentes alunos, mas deixou esta rapariga de 15 anos permanecer analfabeta e preparada para uma vida de tarefas domésticas, como a mãe, a avó, e todas as senhoras daquela notável “tradição cultural”? Quem protege a miúda de Avis? Ou, por ser cigana, tem menos direito ao ensino, ao apoio e à protecção?

As duas histórias correm num tempo inferior a quatro anos de diferença. Era o mesmo governo, o mesmo Estado, a mesma esquerda totalitária, a mesma prepotência, o mesmo Portugal. Os miúdos da Famalicão serão livres e preparados pelos próprios pais. E ainda que o Estado português, na sua proverbial sabedoria, os obrigue a perder dois anos escolares, terão aprendido a criticar e a resistir à repressão, como é saudável em matéria de “cidadania”; mas pela sorte de terem nascido filhos daqueles pais. A miúda de Avis teve sorte diferente, não porque o Estado fosse outro, mas porque era outra a etnia e a “tradição cultural”. Quem foi racista?

De resto, não vale a pena argumentar muito sobre um assunto que o cidadão médio compreende em dez minutos: o melhor que se pode fazer pela “comunidade” e pela cultura cigana é dar-lhes os instrumentos para sair da miséria. Não é “comemorar” com falsas valorizações os exactos motivos que os impedem de se integrar. Quanto às regras sociais, serão ensinadas pelas famílias em casa, e pelos professores na sala de aulas, e pelos auxiliares no recreio e nos corredores, e pelos outros miúdos que brincam e estudam com eles, e pelas pessoas que viajam com eles nos autocarros. Numa palavra, pela sociedade. No seu tom mais livre, e plural, e vivo, agitado, e até paradoxal. Só duas coisas permanecem paradas, a morte e a esquerda.