Não é fácil nem agradável discutir as eleições presidenciais de ontem no Brasil — cujos resultados desconheço no momento em que escrevo este texto. Mas parece que tem de ser feito.

Não é fácil nem agradável, em primeiro lugar, porque nenhum dos dois candidatos em confronto é digno da menor confiança. Em segundo lugar, porque, apesar de poderem parecer radicalmente opostos, são na verdade entediantemente parecidos: ambos se insultam mutuamente e ambos apelam ao voto popular para demonizar o rival — que apresentam como “inimigo do povo”.

Estes tiques de vulgar má-criação são justificados, quando não encorajados, por analistas de rara profundidade: uns justificam a má-criação de Bolsonaro por causa do ‘cansaço do povo’ com a corrupção do PT; outros justificam a má- criação de Haddad por causa da ‘ameaça fascista’ de Bolsonaro ‘contra o povo’.

Mas há uma questão prévia que conviria colocar: por que deveríamos ter de aceitar a má-criação e os tiques revolucionários de qualquer um dos dois candidatos? Por que deveríamos ter de aceitar escolher entre a má-criação de um e a má-criação de outro?

A resposta óbvia parece ser ‘porque são eles os candidatos democraticamente escolhidos pelo povo para a segunda volta’. Acontece, no entanto, que a ideia de que a democracia consiste simplesmente na ‘soberania do povo’ é um equívoco vulgar. E é um equívoco vulgar que em regra tem estado associado a ditaduras, revoluções e guerras civis — não a democracias parlamentares, pluralistas e civilizadas.

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Daí a minha pergunta no título deste artigo: ‘quem lê hoje Macaulay?’ — retomando, aliás, o título de um inspirador ensaio de 1985 da historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb.

Thomas Babington Macaulay, o grande historiador britânico do século XIX, costumava ser a referência comum da direita e da esquerda civilizadas. Ele era a referência comum para compreender a gradual emergência da democracia parlamentar britânica (a mais antiga do planeta), sobretudo após a chamada ‘Gloriosa Revolução de 1688’.

Macaulay começara por deixar patente que a revolução de 1688 tinha sido uma ‘revolução’ conservadora-liberal cujo principal objectivo fora evitar uma nova guerra civil entre ardentes facções revolucionárias rivais. Por isso mesmo, a linguagem da ‘soberania do povo’ foi evitada. Foi preferido o compromisso da ‘soberania do Rei no Parlamento’. E a ideia do Parlamento (com duas Câmaras, uma das quais não eleita) foi indissociavelmente identificada com a convivência entre partidos rivais.

Macaulay aliás definiu a rivalidade civilizada e respeitosa entre (desejavelmente dois) partidos rivais no Parlamento como o eixo da democracia parlamentar. Daí que um deles devesse sustentar o ‘Governo de Sua Majestade’ e o outro a ‘Leal Oposição de Sua Majestade’. Desta forma, seria assegurada a concorrência entre propostas rivais. E essa concorrência deveria ser leal e estar ao serviço do interesse geral.

Aqui assentavam as regras de cortesia da democracia britânica, que impunham o tratamento respeitoso do partido adversário — que nunca deveria ser tratado como inimigo. (Conta-se, aliás, que Churchill terá corrigido um jovem recém-chegado deputado conservador que se referiu à bancada trabalhista oposta como ‘os nossos inimigos’, dizendo-lhe: ‘aqueles não são os nossos inimigos, são os nossos adversários; os nossos inimigos estão atrás de nós…’).

Edmund Burke tinha chamado a estas regras de cortesia da democracia britânica ‘those pleasing illusions that make government gentle and obedience liberal’. E alertou premonitoriamente, logo em 1790, para que a revolução francesa de 1789, ao abandonar essas regras de cortesia e essas ‘ilusões agradáveis’, iria descambar num novo despotismo.

Foi o que aconteceu — não só na revolução francesa de 1789, como em todas as outras ‘revoluções democráticas’ que falaram em nome do ‘povo’ para demonizar as oposições, denunciadas como ‘oligarquias’ e ‘inimigos do povo’. Foi o que aconteceu com os despotismos inovadores de Lenine na Rússia, em 1917, de Mussolini em Itália, em 1924, de Hitler na Alemanha, em 1933.

Resta-nos fazer votos de que a democracia brasileira, após a desagradável campanha eleitoral que ontem terminou, possa em breve restabelecer as regras de cortesia e as ‘ilusões agradáveis’ que têm sustentado as democracias pluralistas e civilizadas.