Quando estava a estudar no liceu, surgiu uma novidade tecnológica: o laboratório de línguas. Na altura estávamos a aprender Francês. Em vez de o aprendermos com um professor, dizia-se, iríamos ter um laboratório em que cada aluno se enfiava numa pequena cabina, com um microfone à sua frente e auscultadores nos ouvidos. Nessas cabinas individuais cada um ouviria um texto gravado, responderia a perguntas seguindo o seu próprio ritmo, gravaria as suas respostas, ouvi-las-ia de novo, corrigiria a sua pronúncia e, num ápice, seria fluente em Francês.
Era a modernidade! Era mais ativo, era mais moderno, as novas tecnologias entusiasmavam os alunos, o professor tornava-se apenas num “facilitador”, o aluno era o “centro das aprendizagens”. Estávamos no século XX, já a caminho do XXI. Os tempos eram outros.
A experiência terminou em poucos dias. Cansámo-nos. Era tão aborrecido estar fechado, sozinho, a ouvir vozes gravadas! Era desanimador falar para um aparelho e manter monólogos sem sentido. Era triste não ter colegas nem um professor que orientasse as conversas, que lhes desse alguma espontaneidade, algum toque humano.
Hoje sabe-se muito mais. Graças a estudos rigorosos de Patricia K. Kuhl e de outros investigadores de neuro-ciências e aquisição de linguagem, sabe-se mesmo que a interacção humana é insubstituível na aprendizagem inicial das línguas.
Entretanto, passaram-se muitos anos… e já ouvimos as mesmas teorias muitas vezes. Era a calculadora que iria entusiasmar os alunos com a matemática. Eram os computadores que iriam transformar os alunos em “aprendentes ativos”. Eram as novas gerações digitais. Eram os “smartphones” que faziam parte integrante da vida dos novos alunos. Era a internet que tornaria obsoleta a memorização e o conhecimento. Não, a escola não poderia ser a mesma!
Uma versão moderna destas teorias românticas postula que os jovens de hoje, nascidos depois de 1984, data em que apareceram os jogos vídeo de 8 bits, seriam completamente diferentes dos que os antecederam. Os novos jovens seriam “nativos digitais”, pois teriam aparecido num mundo novo e, desde muito cedo teriam dominado as tecnologias, que seriam para eles uma segunda pele, o seu meio natural. Nós, pobres adultos, tendo, quanto muito, e naturalmente com dificuldade, aprendido tarde a manejar as novas tecnologias, teríamos delas um domínio defeituoso. Seríamos apenas “emigrantes digitais” e não poderíamos perceber a nova maneira de aprender dos jovens.
Não, não estou a fazer uma caricatura. Foi assim que Mark Prensky descreveu e contrastou as diferenças entre estas gerações. Vale a pena ver o artigo original para perceber a origem destas ideias. As suas consequências para a educação são tão claras como potencialmente prejudiciais: os jovens não precisariam de ser ensinados a dominar as tecnologias digitais, não deveriam ser ensinados de forma sequencial, dever-se-ia aceitar que se distraíssem continuamente pois teriam uma mente especial, capaz de processamento paralelo ou “multitasking”, estariam preparados para a aprendizagem em rede, para a aprendizagem por inquérito próprio, para a experimentação num mundo digital. Seriam, finalmente, “aprendentes ativos” e teriam, por natureza, uma mente crítica. Forçá-los a seguir programas rígidos tolheria a sua iniciativa.
Na última década, contudo, vários estudos de psicólogos cognitivos vieram por em causa todas estas teorias. Começando pelo princípio: tudo indica que os “nativos digitais” são, afinal, um mito.
Quando se analisa a capacidade dos jovens para utilizar as novas tecnologias, verifica-se que são poucas as áreas em que ultrapassam os adultos educados. Na maioria das situações e dos casos, utilizam as tecnologias de forma passiva, limitando-se a funcionalidades básicas no que respeita à sua educação e sem conseguirem dar-lhes uso criativo para a resolução de problemas. Alguns estudos são enfáticos: “a presença ubíqua da tecnologia entre os jovens não lhes traz como resultado uma melhoria na coleta de informação, na procura de informação nem nas suas capacidades de avaliação”.
É verdade que nos impressiona ver a facilidade com que os mais jovens escrevem mensagens ou mudam de uma “app” para outra. Mas também nos impressiona a facilidade com que se levantam depois de uma queda, descem as escadas a correr ou aprendem uma língua estrangeira. Não foi sempre assim?
Recentemente, Paul Kirschner e Pedro De Bruyckere, dois conhecidos investigadores de psicologia cognitiva, publicaram um artigo que sumariza os estudos recentes sobre o mito dos nativos digitais. Esse artigo teve a honra de editorial na prestigiosa “Nature”.
Talvez algumas coisas estejam a mudar, como indica a receção da carta de dois investidores da Apple alertando para o vício das crianças nos telemóveis e outros aparelhos.
No Observador, um artigo recente de Ana Cristina Marques ajudou a colocar os pontos nos ii. Esperemos que os educadores não baixem os braços e deem às novas tecnologias o lugar que merecem: ajudantes preciosos da educação, mas ajudantes que têm de ser dirigidos. Aliás como tudo ou quase tudo em educação.