“O Homem é o Homem e a sua circunstância.”
José Ortega Y Gasset

Faleceu pelas 07:00 do dia 23 de Janeiro de 2020, no Hospital da Luz, o General QE (douradas) José Lemos Ferreira. Assim se deu a conhecer em síntese impessoal e telegráfica o passamento de um grande Homem e militar português e profissional como poucos.

Conheci pessoalmente o General Lemos Ferreira (Portalegre, 23-06-1929, Setúbal, 23-01-2020) já ele era Chefe de Estado – Maior da Força Aérea (CEMFA) – cargo que exerceu com brilho durante sete anos (Janeiro de 1977 a Março de 1984) e eu um jovem tenente em início de carreira.

Estávamos em novembro de 1979 e o então comandante da Base Aérea 1, em Sintra, onde estava colocado, chamou-me ao gabinete e informou-me de que me deveria apresentar no Estado- Maior em Alfragide, no dia seguinte, pois o CEMFA queria falar comigo. Intrigado com as razões de tão inusitada ordem, lá marchei para o encontro – onde fui recebido pelo saudoso Coronel Manuel Vinhas, grande amigo do general e seu para sempre “chefe de gabinete” – onde vim a saber que a razão que espoletara a iniciativa tinha sido a leitura de um artigo (por sinal o primeiro) que eu tinha enviado para publicação na revista “Mais Alto”, órgão oficial da Força Aérea (FA).

A entrevista durou uma hora e quarenta minutos e lembro-me de ter conseguido formular uma questão apenas ao fim de 40’… O CEMFA falou de tudo um pouco do que estava a acontecer na FA e nos planos que a chefia tinha para a mesma com grande entusiasmo e convicção. Nunca pediu nada, insinuou ou deu qualquer orientação; não era porém, necessário pois entendi perfeitamente todas as mensagens que estavam subjacentes.

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A ideia com que fiquei quando saí do gabinete foi a de que a dinâmica em que a FA estava a ser posta era “movida a jacto” com imensos programas e acções em simultâneo, e que ele, Lemos Ferreira, tudo via, tudo impulsionava, desde os grandes projectos até às minudências, pois não é que até tinha lido um artigo de opinião de um simples subalterno?

Felizmente não me enganei, já que a conversa não se destinava apenas a impressionar um jovem oficial (ou outros), de modo a que ele pudesse, ao seu nível, passar mensagens que fossem apenas mistificações tão ao jeito dos políticos. Correspondia a coisas concretas e a um raro comportamento humano em que o que se pensa é o que se diz e o que se diz é o que se faz.

Até ao fim da vida do General Lemos Ferreira nunca dei conta que procedesse de outro modo. Não vou pois, elaborar sobre as funções, cargos ou veneras, etc., que teve; qualquer nota biográfica que se consulte traz isso. Tão pouco traçar uma biografia, pois isso exige um livro, que espero venha a ser escrito um dia. Tão-somente pretendo alinhavar alguns traços do Homem e da sua obra que me parecem relevantes para o momento.

Que foi piloto de dotes virtuosos e competente ninguém duvida; que acumulou vasta experiência aeronáutica tanto em horas voadas em diferentes tipos de aeronaves e de missões e funções de comando em voo e em terra, também ninguém duvida e tudo está bem documentado.

E quanto ao seu saber (alargado) conhecimento dos homens e capacidade de comando e liderança também, creio, não haver controvérsia. Mesmo em pessoas que não o tinham em grande estima.

Tinha visão Estratégica e vastos conhecimentos de Geopolítica. Num percurso que atravessou épocas de paz, de crise e de guerra. Não se lhe conhecem vícios – a que a natureza humana é tão atreita – nem qualquer conduta moral repreensível. Pelo menos eu não conheço e não me estou a reger pelo maléfico relativismo moral que passou a impregnar a sociedade portuguesa como uma mancha de óleo. Tinha uma capacidade de trabalho invulgar, falava directo e direito, não enviando recados por ninguém.

O General Lemos Ferreira foi um militar corajoso e defendeu sempre as suas convicções, a Força Aérea e a Pátria. Na guerra não virou a cara nem desertou do combate. Como CEMFA e, mais tarde, como Chefe do Estado-Maior General – função que exerceu durante cinco anos (Março de 1984 a Março de 1989) e lhe outorgou as tais estrelas douradas – nunca teve qualquer atitude de subserviência para com o Poder Político nem permitiu que este maltratasse as Forças Armadas e os militares.

O “Pencas” – nome derivado do nariz saliente que adornava a sua face e faria as delícias de qualquer caricaturista – como era tratado pelo pessoal com um misto de respeito, temor reverencial e praxis militar, nunca deixava os créditos por mãos alheias.

O País deve-lhe muito pelo seu papel na arrancada do 25 de Novembro de 1975 e na contenção da escabrosa deriva comuno/anarquista para onde o “PREC” estava a empurrar e a desgraçar a Nação, que restava. E é pena que o papel da FA (enfim, a parte que se manteve sã), não seja considerado devidamente na importância que teve durante aqueles trágicos eventos.

Andei, porém, enganado durante muitos anos ao afirmar que o “nosso general” tinha deixado obra para 20 anos. Felizmente que emendei a mão há algum tempo e passei a dobrar aquele número. Arrisco-me até a dizer que se não fosse a imensidão da sua obra – equiparável talvez e apenas à do “nosso pai” General Costa Macedo e do então TCor Kaúlza de Arriaga – a FA possivelmente já não existiria hoje. Ao mesmo tempo que fez frente a apetências do Exército e Marinha que se levadas a termo teriam mutilado a FA irreversivelmente.

Como muito bem disse o Capelão-Chefe na sua notável homilia, o General Lemos Ferreira pensava em grande e via para além do horizonte… E fez tudo isto mantendo a sua família unida. Elaboremos apenas sobre alguns aspectos da verdadeira revolução hercúlea operada na FA, tendo por pano de fundo o estado caótico em que a FA emergiu do PREC (aliás como os restantes Ramos e todo o país):

  • Foi necessário começar por se sanear as fileiras, repor a hierarquia, a disciplina e retomar a vida normal da estrutura das unidades;
  • Retomar o recrutamento, selecção e a instrução das tropas;
  • Reorganizou-se toda a estrutura superior da FA e das bases aéreas;
  • Introduziram-se novos métodos de trabalho e gestão nomeadamente nas áreas do pessoal e da logística;
  • Refez-se do zero toda a legislação para o que se elaboraram cerca de 400 Regulamentos, Manuais e Determinações, o que durou muitos anos e é uma tarefa nunca terminada;
  • Refez-se todo o treino e preparação para os novos cenários de actuação e integração na doutrina da OTAN, bem como ao aproveitar dos respectivos programas, o que se fez numa escala nunca vista. Passou também a enviar-se pessoal para fazerem parte das estruturas da OTAN, prática que tinha sido praticamente interrompida com a guerra em África;
  • Racionalizou-se o dispositivo de que se destaca a concentração na área de Lisboa, de todas as unidades e órgãos em apenas três locais: Monsanto, Alfragide e Lumiar;
  • Lançou-se um grande volume de obras para a construção de um Estado – Maior modelar, um Hospital moderno e uma sala com acústica adequada para a Banda de Música;
  • Foi construída a Academia da Força Aérea que é hoje possivelmente o melhor “campus” universitário do País (“Vamos arrancar nem que seja em tendas”…)
  • Remodelou-se a Capelania- Mor e “adquiriu-se” uma Igreja para ser a Igreja da FA;
  • Modernizou-se o Instituto de Altos Estudos da FA, em Sintra;
  • Obteve-se verbas para fazer obras em todas as unidades, nomeadamente Bases Aéreas, que estavam muito degradadas devido às prioridades terem estado concentradas no Ultramar, derivado da guerra de guerrilha fomentada contra Portugal e que durou 14 longos anos;
  • Lançou-se, em 1978 (creio) um enorme projecto – talvez o maior existente em Portugal na altura, o SICCAP – Sistema Integrado de Comando e Controlo Aéreo Português, que constituiu a base para a remodelação de todo o Sistema de Defesa Aérea Nacional e foi financiado maioritariamente pela OTAN.

Este programa tinha três fases e levou mais de 20 anos a implementar (infelizmente dadas as restrições financeiras, em pessoal e outras, está hoje em dia a ser desconjuntado de forma lenta).

A primeira fase era composta de um centro blindado e subterrâneo de comando e controlo, em Monsanto; um centro de comando secundário em Montejunto; três esquadras de radares em Paços de Ferreira, Montejunto e Foia e sistemas modernos de comunicações; a segunda fase que contemplava o Arquipélago da Madeira ficou concluída à relativamente pouco tempo e consta de uma estação radar no Pico do Areeiro, integrado com o Continente.

A terceira fase alargava-se ao Arquipélago dos Açores agora com dois radares em Santa Maria e Lages. Esta fase foi cancelada após a queda do Muro de Berlim, em 1989, por a OTAN ter retirado os fundos previstos por entender que a ameaça não o justificava. Sem estes fundos não houve vontade política de prosseguir a obra só com verbas nacionais. O sistema de armas F-16, que tornava operacional e efectivo, todo o sistema, só veio nos anos 90 (os primeiros chegaram em 18/7/94).

  • Foi racionalizado e melhorado todo o sistema de armas existente (de 24 tipos de aeronaves, em 1974, por ex., passou-se para 12), fazendo o “fase out” de algumas, integração de outras que tinham sido compradas do anterior (caso do FTB e do Aviocar) e aquisição de novas, caso do C-130; do T-38, Falcon 20 e do A-7P. Este último foi adquirido em vez de um caça por faltarem 20 milhões de dólares e os mesmos não terem sido disponibilizados.
  • Foi adquirido algum armamento moderno, como por exemplo misseis “Sidewinder L”, “Maverik” e, mais tarde o “Harpoon”; bombas MK-82,83 e 84, BAP 100; foguetes CRV7, etc. (lembra-se que uma FA sem armamento é apenas um “aeroclube” muito caro…);
  •  Modernizou-se as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, em Alverca, aumentando-lhes as capacidades ao mesmo tempo que se conseguiu negociar novos contratos de reparação no estrangeiro;
  • Houve especial cuidado na recuperação dos Paraquedistas, que eram muito queridos na FA, lançando-se as bases da sua completa restruturação e reconversão para os cenários das ameaças convencionais, chegando-se ao ponto de se constituir uma brigada ligeira de paraquedistas com ampla autonomia dentro da estrutura superior do Ramo. Muito armamento e equipamento moderno foram adquiridos. Estou certo de que se o General Lemos Ferreira estivesse no activo, jamais o Corpo de Tropas Paraquedistas teria transitado para o Exército;
  • Impulsionou a criação da Associação dos Especialistas da FA (1977) e da Associação da Força Aérea Portuguesa (1/7/83), inspiradas na “Air Force Association” dos EUA e cujo funcionamento representa o que verdadeiramente uma associação de militares deve representar (caso o Poder Político defenda devidamente a Instituição Militar e os militares o que não tem sido o caso);
  • Em súmula todo se racionalizou, modernizou e reorganizou. Numerosos oficiais e sargentos foram ao estrangeiro actualizar-se e em pouco tempo a FA podia ombrear com lustre nos exercícios com forças aliadas.
  • Como CEMGFA continuou a apoiar todo este desenvolvimento, agora alargado aos outros Ramos, tentou desenvolver a indústria de armamento nacional e alargou e modernizou o Campo de Tiro de Alcochete. Opôs-se sempre a que os outros Ramos possuíssem meios aéreos orgânicos, no que não conseguiu vencimento.

Muito ficou por dizer, mas pode-se seguramente afirmar sem receio de errar, que existe uma FA antes do General Lemos Ferreira e outra depois! Quando terminou a sua carreira militar assumiu as de Presidente do Conselho de Gerência na Aeroportos e Navegação Aérea, em novembro de 1989. Entretanto em reconhecimento da sua carreira militar foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, em 29 de Maio daquele ano, pelo Presidente da República, perante formatura de tropas. Como deve ser.

Mas a condecoração que mais quero evidenciar das 13 nacionais e 10 estrangeiras que recebeu, é a medalha de prata de Valor Militar com Palma, por ser uma medalha difícil de obter e ter sido em combate, na comissão que fez na Guiné, a partir de 1971, onde foi segundo comandante e comandante da Base Aérea 12 e comandante da Zona Aérea da Guiné e Cabo Verde. Tinha ainda feito uma comissão no Estado da Índia, a partir de 1960, onde foi piloto dos Transportes Aéreos da Índia Portuguesa. Estado da Índia que a União Indiana nos arrebatou vilmente, em 18 de Dezembro de 1961.

Até ao fim da vida o General Lemos Ferreira manteve-se sempre activo e interventor cívico.

É certo que Lemos Ferreira não fez tudo sozinho — felizmente que a Força Aérea tem tido sempre ao seu serviço uma plêiade de bons oficiais que depois originam bons sargentos e bons especialistas, praças e civis — mas teve o mérito e o condão de os saber escolher, promover e liderar no cumprimento da sua Missão primária: voar e lutar, na defesa do espaço aéreo nacional e na cooperação com as forças terrestres e navais!

A chefia da FA fez-lhe uma homenagem alargada em 23 de Junho de 2017. E poderia ter sido mais alargada. A FA teve a felicidade de ter o Homem certo na altura certa, cumprindo-se o dito de Ortega y Gasset, mas que Lemos Ferreira teve o saber e a visão de bem aproveitar. E hoje apesar de estar de luto deve estar orgulhosa disso.

Por tudo o que deixo dito, bem fizeram as altas entidades presentes em deslocarem-se ao funeral, onde se destacam o Chefe da casa Militar do PR (o próprio estando fora do país enviou mensagem evocativa); o Ministro da Defesa, o CEMGFA e naturalmente quase todos os oficiais da FA no activo e muitos antigos Chefes de Estado-Maior. E não teria ficado mal ao Exército e Armada terem-se feito representar.

Infelizmente a comunicação social à excepção de um jornal diário, praticamente ignorou o evento. É natural: o “actor” era branco, heterossexual, não tinha renegado o seu baptismo, não se drogava, não era cantor rock, nem estava ligado ao futebol e, “last but not the least”, era militar e patriota, podia lá ser notícia por boas razões?!

Ficámos apenas tristes por a família do general, certamente a pedido deste, ter dispensado as honras militares a ponto de a urna não estar sequer, coberta com a Bandeira Nacional. É decisão que obviamente respeitamos, mas gostaríamos tivesse sido diferente, não só porque a elas (honras) tinha direito e as merecia, como serviriam de exemplo. É que, sem embargo das cerimónias fúnebres dizerem respeito sobretudo a quem parte, também servem aos que ficam.

É certo que hoje em dia é fácil aos bons portugueses andarem zangados com Portugal, pois Portugal é representado pelo seu Estado e o Estado há algumas décadas a esta parte, está longe de bem representar a Nação Portuguesa. E a FA é já, actualmente, uma sombra daquilo a que ele aspirava. Que o seu exemplo nos sirva para tocar a rebate.

O General Lemos Ferreira não teve uma boa vida, mas teve uma vida boa. Que Nossa Senhora do Ar, excelsa padroeira da Força Aérea, o guie pelas etéreas paragens do voo eterno.