O autoelogio nunca foi moralmente aceite; e bem. Mas, se neste texto o objetivo é defender a estupidez, convém deixar esta declaração de interesses, em forma de confissão: se não puder ser palerma, tenho muito pouco para dizer.

A verdade é que tem sido cada vez mais recorrente perguntar se a liberdade de expressão comporta a enunciação de ideias estúpidas, e de que modo nos devemos comportar quando elas são, realmente, expressas. Sendo que, por “ideia estúpida”, podemos aqui equivaler preconceitos, estereótipos e superstições.

Quanto a mim, a resposta rápida à primeira pergunta é “sim”. Aliás, não só considero que se não pudermos exprimir ideias estúpidas, preconceituosas, estereotipadas e supersticiosas, não temos verdadeira liberdade, como acho que a proteção dessa liberdade é a única maneira de garantir a defesa dos direitos que podem ser postos em causa com certas afirmações.

A verdade é que a liberdade, por definição, não é necessária para dizer coisas “sensatas”. Serve para dar direito de expressão à ignorância e à idiotice. Muito embora se deva dizer, para assombro das almas, que, como evidenciou Robert Musil, “cada inteligência tem uma estupidez que lhe corresponde”. A liberdade de expressão, aliás, não é só o direito de se dizer o que se quer. É, também, o direito de ser exposto ao “herege”. E é nessa outra dimensão que a censura, inclusivé, ataca. Mas vamos por partes.

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Antes de mais, parece-me redundante afirmar que defender a liberdade de expressão não significa concordar com tudo o que se diz. Defender o direito de alguém dizer coisas ignóbeis, não significa achar normal ou validar quem é ignóbil. Mas – e esta é uma pergunta recorrente – e nos casos como aqueles em que Karl Popper descreve uma tolerância ilimitada face a posturas intolerantes? Não estaremos nós a abrir um caminho para o fim da tolerância?

Muita embora não seja ninguém para dizer que Karl Popper estava errado, parece-me que, neste caso específico, está. Por dois motivos essenciais. Primeiro, porque, e usando um exemplo histórico concreto, a República de Weimar, regime que vigorou na Alemanha de 1918 a 1933, era particularmente repressor de ideias duvidosas, mas não foi isso que conseguiu afugentar Hitler do poder. Aliás, a escalada de vitimização foi um dos oxigénios fundamentais para o nazismo. Segundo, porque em nenhuma democracia liberal existe uma dita “tolerância ilimitada” sobre “posturas intolerantes”. Como especifica a lei portuguesa, quando existe um dano/ameaça específica, provável e iminente, a liberdade de expressão cai. Ou seja, uma coisa é escrever numa parede “morte aos cristãos”, outra é aparecer numa missa, com um taco de basebol na mão, a enunciar o mesmo mandamento. Algo que é, aliás, estúpido, considerando que, pelo que vou observando, os cristãos, pelo menos no nosso país, têm pouco amor a esta prática desportiva, mais própria de solos americanos.

Por outro lado, o facto de existir no código penal português, um crime de injúria ou difamação por ameaça e incitamento à violência ou ódio contra “pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”, não significa que tudo o que preconceituosamente se diz acerca destes aspetos caia nessa pena. Mas, podemos perguntar, isso não é normalizar o “discurso de ódio”? Também tenho dúvidas e, de novo, por dois motivos.

Em primeiro lugar, pela dificuldade em definir o que é o discurso de ódio. Aliás, este é o maior buraco negro de quem pretende limitar a liberdade de expressão. Geralmente quer-se passar a ideia de que isto é tudo muito simples, imediato e intuitivo, mas não o é. Reparem. Uma crítica é discurso de ódio? Se sim, quando? Generalizações e simplificações também são, ou não? Quem estabelece os limites? Um professor pode dizer que um aluno é um “preguiçoso de primeira”? Se não, quero pagamento em retroativos. E se disser que o mesmo aluno tem uma propensão para não trabalhar, já pode? Mesmo que essa seja a definição de preguiça? E a mentira, também é discurso de ódio? Dizer-se que quem não é branco é intelectualmente inferior é mentira, simples imbecilidade ou discurso de ódio? Quando um miúdo diz a uma mãe, “detesto-te”, pode ser encaixado em que categoria? Por outro lado, qual é o barómetro da ofensa e do insulto? Basta dizer que me sinto ofendido? Dirão: “Tem que haver alguma objetividade”. “Mas então, quem lhe dá o direito de dizer que não me sinto ofendido, quando me sinto verdadeiramente ofendido? Isso sim é que é uma ofensa grave!”. No fundo, em que é que ficamos?

Em segundo lugar, ter medo do “discurso de ódio” é a pior publicidade que se pode fazer à marca que defendemos. Estou consciente que isto é algo muito contraintuitivo. Sempre que alguém exprime um ponto de vista racista, homofóbico ou xenófobo, o mais imediato é mandar calar. Mas se nós acreditamos que essas ideias são realmente abjetas – porque o são – não deveríamos ter medo de nos confrontarmos com quem pensa diferente em relação a temas tão importantes. Aliás, a infâmia é essencial para o conhecimento, porque nos leva a pensar sobre o porquê de sabermos aquilo que pensamos que sabemos. E é precisamente por isso que estas posturas não podem ser censuradas. Quando opiniões tão ridículas como “o holocausto foi uma invenção”, ou algo mais vocal como “os emigrantes são todos uns gatunos”, forem proibidas, deixaremos, mais cedo ou mais tarde, de ser capazes de perceber por que razão elas não fazem qualquer sentido.

Mas então, como devemos agir? Parece-me que o ponto é proceder sempre no balanço entre o dano que certa afirmação vai causar e o bem que se quer preservar. Dizer “odeio ruivos” ou “vamos atirar aquele ruivo do penhasco”, não pode ser igual. E nem tudo são comícios em Nuremberga. Sem esta regra básica incorre-se, de facto, num sério risco: os mecanismos que forem usados hoje para censurar uma opinião, mesmo que com presumíveis boas intenções, podem ser recuperados, mais tarde, contra nós mesmos, sem a mesma seriedade. Sobre isso, retenhamos uma máxima fundamental: sempre que quebrarmos todas as leis para apanhar o Diabo, ficaremos à sua mercê quando ele fugir das nossas mãos.

Por isso, algo que é sempre importante relembrar é que a ortodoxia não subsiste sem a heterodoxia. E essa é a origem da liberdade, qualquer que ela seja. As pessoas não precisam de ser protegidas de nada. Precisam é de ver, sem filtros ou mitificações, aquilo que os radicalismos defendem.