A incredulidade e o desconcerto reinam quando consideramos a aparente ausência de motivos que estão na base da actual guerra na Europa. A incredulidade aumenta quando vemos imagens a confirmar que o principal alvo a abater é a população civil e as infraestruturas essenciais à vida quotidiana. Esta guerra sem motivos aparentes é, sem dúvida, uma guerra contra a humanidade. A Ucrânia é um país com um elevado índice de natalidade e de jovens. Os diversos meios de comunicação mostram-nos isso mesmo; que a grande maioria dos refugiados, ou dos mortos, são mulheres, crianças e jovens. Também idosos e pessoas fragilizadas pela doença. O ataque ao hospital pediátrico e maternidade confirmou que o principal motivo é a destruição da Vida.
Neste cenário de guerra, o Dia Internacional da Mulher foi particularmente assinalado na Conferência Internacional “Mulheres Doutoras da Igreja e Padroeiras da Europa em diálogo com o mundo de hoje”, que se realizou em Roma na Pontifícia Universidade Urbaniana nos dias 7 e 8 de março. O primeiro dia, esteve centrado nas Doutoras da Igreja: Teresa de Jesús, Catarina de Sena, Teresa de Lisieux e Hildegarda de Bingen. O segundo, nas Padroeiras da Europa: Brígida de Suécia, Teresa Benedicta de la Cruz (Edith Stein) e Catarina de Sena. O Papa Francisco assinalou o evento com uma mensagem dirigida aos participantes do Congresso, na qual reconhecia que a eminente doutrina destas mulheres, de diferentes contextos históricos e diferentes nacionalidades, «ganha nova relevância nestes tempos pela sua permanência, profundidade e atualidade e, nas circunstâncias atuais, oferece luz e esperança ao nosso mundo fragmentado e caótico». Isto vem ao encontro daquilo que o Papa tem afirmado constantemente: sem memória não há profecia, nem futuro.
Antes de mais, todas estas mulheres tiveram a capacidade de ler realisticamente os sinais dos tempos, o que lhes permitiu actuar com objectividade nos momentos históricos adversos em que viveram. Com que discernimento? O Papa Francisco resume assim o ponto de partida comum que as unia: foram «dóceis ao Espírito, através da graça do Baptismo, seguiram o seu caminho de fé, movidas não por ideologias mutáveis, mas por uma adesão inabalável à ‘humanidade de Cristo’ que permeava as suas ações». Esta adesão inabalável à humanidade de Cristo conduz-nos à origem do mistério do Mal, que todas elas enfrentaram e ao qual se opuseram. Primeiro, a graça que se recebe no Baptismo leva-nos a distinguir – no Espírito – o mundo virtual e o mundo real, porque «o que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas» (2 Cor 5, 17). Ou seja, o mundo antigo deixou de ter substância e subsistência; existe uma nova realidade, redimida, que todos habitamos. As mulheres têm uma particular sensibilidade para este discernimento porque têm memória do primeiro enfrentamento com o Mal: «Travou-se uma batalha no céu: Miguel e os seus anjos declararam guerra ao Dragão. O dragão e os seus anjos combateram, mas não resistiram. E nunca mais encontraram lugar no céu: o grande Dragão, a Serpente antiga (…) o sedutor de toda a humanidade, foi lançado à terra; e, com ele, foram lançados também os seus anjos» (Ap 12, 7-9). Isto significa, que houve um grande combate entre as pessoas angélicas pelo motivo de um elevado número de anjos se terem recusado a servir o plano original de Deus: o desígnio da Incarnação, em Jesus Cristo. É após este combate que o Dragão – personificação do Mal – se insurge contra a mulher e a maternidade (Ap 12, 13-18). O Apocalipse, entendido como revelação, é um espelho onde se reflectem acontecimentos da Origem. Depois do primeiro combate, surge o ataque à mulher, no Éden, em que a “serpente” a induz a rejeitar o plano divino da Incarnação. Face a isto, Deus pronuncia-se nestes termos: «Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar» (Gn 3, 15). É neste arco de tempos, entre o Génesis e o Apocalipse, que assistimos a um combate constante entre as forças do Mal e a Humanidade, criada à imagem de Deus.
Neste contexto, o Papa destaca as virtudes que caracterizaram estas grandes mulheres da Igreja e tão necessárias no momento histórico actual: a coragem de enfrentar dificuldades, a capacidade do concreto, a visão positiva da História, da beleza e do humano. Acresce, que elas actuaram «de acordo com o plano de Deus, e (com) uma visão clarividente do mundo e da história – profética – que as tornou semeadoras de esperança e construtoras do futuro». Francisco considera, ainda, na sua mensagem, que a vida destas mulheres se inscreve num caminho de santidade comum, próprio de todos os baptizados. Esta afirmação poderia causar-nos alguma perplexidade se desconhecesse-mos que o Mal não tem substância; ou seja, que as forças do Mal não têm a última palavra.
Tudo isto nos leva a considerar que a justificação para as guerras actuais se inscreve num ateísmo militante, que se insurge contra a natureza humana conforme ao plano original de Deus. Estamos perante a versão mais sofisticada desse ateísmo: o transumanismo, as ideologias de género, a inteligência artificial. Mas é precisamente a Incarnação de Deus, em Jesus Cristo, que impede a consolidação do mundo virtual e a modificação da natureza humana. Na grande obra de Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179) «Scivias» (conhece as vias), ela fala-nos da ideologia de género no Livro Terceiro, décima primeira visão. Quando o Papa Bento XVI a proclamou Doutora da Igreja, em 2012, ele referiu que os seus escritos se dirigiam ao terceiro milénio: «a sua mensagem é extraordinariamente actual no mundo contemporâneo». A actualidade da vida destas mulheres, doutoras da Igreja e Padroeiras da Europa, permite-nos vislumbrar o mundo novo configurado e alicerçado em Deus e distinguir o mundo virtual da realidade que perdurará para sempre. Sem dúvida que as respostas necessárias, face ao nosso mundo fragmentado e caótico, estão fortemente alicerçadas na santidade da vida quotidiana.