No passado dia 14, no “Último apaga a luz”, da RTP3, Inês Pedrosa afirmou que, para discursar no 10 de Junho, “é preciso ter pensado o país”. Algo que, considera ela, João Miguel Tavares não terá feito. A expressão intrigou-me. O que significa “pensar o país”? É diferente de “pensar no país”? E de “pensar sobre o país”? Parece óbvio que sim. Inês Pedrosa pode não pesar muitas coisas, mas de certeza que pesa as palavras. Afinal, é escritora. E se, entre as palavras pesadas, há algumas que lhe merecem especial atenção, são todas as que rodeiam o verbo “pensar”. Afinal, é mulher. E, como sabe qualquer homem a quem uma mulher já perguntou “em que é que estás a pensar?”, não se conjuga “pensar” displicentemente. Portanto, Inês Pedrosa sabe a diferença e optou por destacá-la: João Miguel Tavares pode pensar no país, pode até pensar sobre o país, mas, é evidente, não pensou o país.
“E qual é a diferença?”, pergunta o leitor, da forma rústica tão típica das pessoas que às vezes pensam nesta temática, até pensam sobre esta temática, mas nunca pensaram esta temática. Até porque, se já o tivessem feito, não seriam pessoas que perguntam, mas sim que indagam.
A diferença está na profundidade da reflexão. “Pensar em” é superficial. Uma pessoa que apenas “pense em” Portugal consegue continuar a pensar noutros países, sem se aborrecer muito. “Pensei em Portugal, mas acabei por pôr Peru”, é uma frase que se ouve quando calha a letra P num jogo de STOP. “Pensar sobre” é diferente, pede um bocadinho mais de esforço. Implica que uma pessoa levante ligeiramente o rabo da cadeira, para se poder debruçar “sobre”. Não se consegue “pensar sobre” dois temas ao mesmo tempo, embora seja exequível acumular um “pensar sobre” com dois ou três “pensar em”. Já “pensar o” exige um poder de análise apenas compatível com uma vida toda dedicada ao tema, em detrimento da família, da diversão e da higiene, possivelmente regada com um ligeiro toque de Asperger. Por exemplo: alguém que pensa em comida é uma pessoa normal com larica; alguém que pensa sobre comida é badocha; alguém que pensa comida tem duas estrelas Michelin. Não sei se me fiz entender, é provável que não. Acho que se vê que pensei no assunto, mas não cheguei sequer a pensar sobre o assunto, quanto mais pensar o assunto.
Daí eu ter chegado tarde a esta questão do 10 de Junho. Quis preparar-me devidamente e para isso precisei de pensar Inês Pedrosa. Não foi fácil. Comecei por pensar em Inês Pedrosa. Suavemente, primeiro, para não me aleijar. Uma ou duas vezes ao dia, seguidas de alongamentos, hidratação e descanso. Ao fim de uma semana estava a conseguir pensar sobre Inês Pedrosa. A bizarria inicial das minhas meditações foi sendo substituída pela bizarria intermédia das minhas meditações. Mas só anteontem, depois do banho turco e de um jejum de 36 horas, consegui, finalmente, pensar Inês Pedrosa. Entrei numa espécie de transe e foi-me revelada a verdade. Estou, finalmente, em condições de me pronunciar.
Descobri que Inês Pedrosa, enquanto intelectual, beneficiou do mesmo fenómeno que eu, enquanto humorista. Ambos lucrámos com a crueldade da televisão: impiedosa na forma como nos mostra ao mundo, realça os nossos defeitos que, paradoxalmente, nos dão credibilidade profissional. Eu, cotejado com homens mais altos, magros e bonitos, apesar de achincalhado fisicamente, ganhei ao nível humorístico. Ser gordo e feio tem, por si só, piada. Inês Pedrosa beneficiou da mesma coisa. Comparada com Raquel Varela que, por ser jovem, bonita, esguia e bem arranjada, acaba por parecer superficial e fútil, Inês Pedrosa ganha uma gravitas que não possui. Sei, por experiência própria, que esta sorte confere auto-confiança, uma bazófia que nos faz arriscar toda e qualquer baboseira. Como esta da exigência, para o 10 de Junho, de alguém que tenha pensado o país. Inês Pedrosa requer um intelectual desse jaez, que pense o país e saiba não só o que significa jaez, mas também que é “desse jaez” e não “dessa jaez”. Inês Pedrosa é uma porteira do 10 de Junho e não vai franquear a subida ao púlpito de alguém que meramente “pensa em Portugal”, como um agente de viagens a sugerir destinos de férias; nem de alguém que apenas “pensa sobre Portugal”, como um filósofo de ressaca. Não, exige quem “pensa Portugal”, assim, sem preposições que limitem o alcance da reflexão. Por mais snob que Inês Pedrosa pareça, ela tem razão. Para falar sobre um tema, é obrigatório que se tenha pensado o tema.
Por isso acho estranho que Inês Pedrosa tenha dito que ter João Miguel Tavares a discursar seria a mesma coisa que ter lá um padeiro. Porque se percebe logo que Inês Pedrosa não pensou padeiros. Ao contrário de mim. Não sendo um, dou emprego a vários. A relação entre patrão e empregado pode parecer longínqua, mas existe proximidade. Como Inês Pedrosa bem saberá, uma pessoa a quem pago o salário hoje, pode vir a estar casada comigo amanhã. E não há mal nenhum nisso, mesmo que haja dinheiros públicos ao barulho.
Inês Pedrosa pode pensar em padeiros. Pode até pensar sobre padeiros. Mas vê-se que não pensa padeiros. Há quanto tempo não verá um? Se se tivesse informado, saberia que, à hora do discurso, nenhum padeiro está acordado, pois passou a noite a amassar. Portanto, Inês Pedrosa não pode esnobar um padeiro que, de antemão, já esnobou o discurso do 10 de Junho, deixando-se dormir.
Confesso que não percebo a embirração de Inês Pedrosa com os padeiros. Afinal, são quem prepara o pão e bolos que ela, evidentemente, aprecia. Já a embirração com João Miguel Tavares, percebo-a bem. Inês Pedrosa não leva a mal que João Miguel Tavares não pense Portugal, leva a mal que João Miguel Tavares não pense Portugal da forma como ela acha que o país devia ser pensado. Isto é, na sua totalidade. É que João Miguel Tavares até pensa Portugal, mas fá-lo aos bocadinhos: pensa Vale do Lobo, pensa Cova da Beira, pensa Rua Castilho, pensa um outlet em Alcochete, pensa o edifício na Fontes Pereira de Melo onde é a sede da PT.
E é isso que Inês Pedrosa e os que se irritaram com o discurso não admitem: João Miguel Tavares recorda José Sócrates, o Primeiro-Ministro que os socialistas veneravam e querem agora esquecer que se trata de um vigarista que, digamos, pensou burlas. Alegadamente, claro. Sócrates, em Portugal, é metonímia para corrupção e, por coincidência, Inês Pedrosa teve o cuidado de avisar que falar sobre corrupção é alarmismo e populismo. Disse-o de uma maneira que até parece que praticá-la não é tão grave.
João Miguel Tavares é um post it que lembra, entre outras coisas, que o actual PM foi número 2 de Sócrates, que o actual número 2 do PM foi número 3 de Sócrates, que o outro número 2 de Sócrates, cujo filho viveu em Paris às suas custas, é agora eurodeputado do PS e que, só para falar em temas recentes, a CGD foi usada por Sócrates para controlar o BCP. O problema de Inês Pedrosa é que o 10 de Junho fê-la pensar em João Miguel Tavares. Aliás, pela exasperação demonstrada, foi mais profundo que isso: o 10 de Junho fê-la pensar João Miguel Tavares.