O Decreto-Lei nº 57/2016 começa por se propor a nobre missão de estimular a contratação de doutorados para logo estabelecer, “desde já, a obrigatoriedade de abertura de procedimentos concursais para a contratação de doutorados nas instituições públicas, ou dotadas de financiamento público, em que os bolseiros de pós-doutoramento exerçam funções há mais de três anos, seguidos ou interpolados.”
Rapidamente se chegou à conclusão de que esta boa intenção ia ter um custo que não poderia ser suportado pelas universidades nem pelas instituições privadas sem fins lucrativos que vivem no seu perímetro, nem a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) poderia acudir a todas as necessidades. Sem vacilar, o Governo segue em frente e dá uma ajuda com uma peculiar lista de FAQs e tenta limitar os danos com uma lista bolseiros doutorados financiados diretamente pela FCT há mais de três anos consecutivos à data de 1 de setembro de 2016, onde exclui aqueles que tiveram interrupções da bolsa. Tão sério e nobre objetivo vale bem uma ou duas dezenas de milhões de euros.
Só que rapidamente todos se dão conta de que isto só adia o problema por três ou seis anos e que é preciso ir mais longe. O Bloco e o PCP chamam o decreto-lei ao Parlamento e agora o próprio Governo anuncia e o PS submete uma emenda que não só elimina a exclusão criativa da FCT dos bolseiros com três anos interpolados mas vai mais longe e mandata as instituições para, seis meses antes do termo do sexénio de contrato, abrirem um novo “procedimento concursal para categoria da carreira de investigação científica ou da carreira de docente do ensino superior”.
Em resumo, os pós-doc com três anos de bolsa vão ter um concurso à medida para um contrato de seis anos e, no termo deste, têm já garantido um novo contrato à medida para integração na carreira de investigação ou na carreira docente.
Temos um plano em que um (relativamente) pequeno desvio na utilização imediata de fundos de investigação para transformar contratos de bolseiro em contratos de trabalho vai criar uma bola de neve em que os cerca de 2500 doutorados anualmente têm a legítima expectativa de ter direito a uma bolsa de pós-doc de três anos a que se segue um contrato de trabalho de seis anos e finalmente um contrato permanente de investigador ou docente em funções públicas!
Havendo hoje perto de 15000 docentes doutorados nas universidades e politécnicos públicos (e um número residual de investigadores), a renovação geracional exigiria, em estado estacionário, uns 500 novos doutores anualmente. A contratação de todos os bolseiros pós-doc como o Governo propõe corresponde a um crescimento exponencial futuro por tempo ilimitado à taxa de 13% ao ano! E assume este otimismo enquanto declara que o orçamento do ensino superior não poderá crescer nos próximos anos e o orçamento público da investigação rebenta já por todas as costuras face às pressões anunciadas regularmente.
Não é honesto que alguém prometa aquilo que não pode dar! Dificilmente pode dar no muito curto prazo mas seguramente não pode honrar no médio prazo. A situação de muitos bolseiros que se arrastam ao longo de anos e até de decénios com bolsas e contratos a três ou seis anos é injusta, improdutiva e desnecessária.
Numa sociedade estabilizada como já é a nossa, o destino maioritário de um doutorado não é a vida académica. O doutoramento é o 3º ciclo da educação superior com vista à realização pessoal do estudante e à satisfação das necessidades da sociedade. Só uma fração irá exercer funções no sistema público de ensino superior e de I&D. Todos sabemos isto e temos de construir um percurso educativo e de inserção pós-doutoramento que tenha em vista esta realidade. Assim acontece na generalidade dos países desenvolvidos; assim vai acontecer entre nós. Infelizmente, não somos o único país onde a inserção de doutorados fora da academia se está a dar a um ritmo mais lento do que a sua graduação com a consequência de uma pressão doentia para o prolongamento de pós-docs ou contratos de trabalho sem perspetivas de permanência.
O rácio docente discente em Portugal é já hoje muito próximo da média da OCDE (e da UE15) pelo que não é de esperar um crescimento rápido no futuro. Se contabilizarmos todos os doutorados em atividade, muitos departamentos universitários têm rácios próximos dos praticados em Oxford ou Princeton. Temos de dar a muitos dos nossos pós-docs que já deram provas da sua competência e competitividade científica internacional as condições para afirmação plena na vida académica. Isto só se consegue com lugares de docente de carreira com a intenção de reforçar o desempenho científico dos departamentos que já mostraram a sua competitividade.
Muitos dos bolseiros atuais com mais de três anos de pós-doc deveriam beneficiar imediatamente de um programa de contratação deste tipo. Isso exige uma reorientação do modelo de gestão do sistema científico que tem sido seguido. Mas a estabilização dos investigadores que já deram provas da sua competência exige esse esforço. E as universidades têm hoje condições para gerir esta nova etapa do nosso desenvolvimento e da nossa afirmação como uma sociedade do conhecimento. Assim sejam criados os instrumentos de gestão do sistema científico que o apego a modelos já ultrapassados tem impedido.
Professor da Universidade do Porto, foi secretário de Estado do Ensino Superior no XIX Governo e do Ensino Superior e da Ciência no XX Governo