O conceito de vida humana não está sujeito a redefinição, como também não o estão o respeito que por esta se deve ter e a sua inviolabilidade. As ideias expressas no artigo de opinião de Mar Mateus Costa, presidente da ANEM – Associação Nacional de Estudantes de Medicina, vão, por isso, contra os ditames da Ciência e da leges artis, e merecem ser desmistificadas.

Embora o Juramento de Hipócrates tenha caído em desuso, como explicado correctamente por Mar Mateus Costa, alguns dos desafios que se apresentavam ao médico antigo continuam actuais. Sobre a eutanásia e a morte a pedido da vítima, por exemplo, o sábio grego não poderia ter sido mais esclarecedor: “Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei”. Este ensinamento está também plasmado na actual Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial, a qual afirma perentoriamente que o médico deve guardar “o máximo respeito pela vida humana”. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos reforça ainda o valor da vida na sua totalidade, ditando que “o médico deve guardar respeito pela vida humana desde o momento do seu início” até ao “momento do fim da vida”. Como se tal não bastasse, o mesmo Código é muito claro sobre a ajuda ao suicídio: “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia”. Primum non nocere, “não farás o mal”, foi-me dito no primeiro dia, como estudante de Medicina, e repetido ao longo de quase três anos de faculdade.

Este tipo de asserções bastariam para que qualquer jovem estudante, em especial a presidente da ANEM, expressasse sérias desconfianças sobre esta lei, aprovada na generalidade no dia 20 de Fevereiro.

O artigo de Mar Mateus Costa torna-se particularmente gravoso quando manifesta incertezas quanto aos conceitos de “máximo respeito” e “vida humana”. Não se entende a separação elaborada no texto entre “meramente estar vivo” e “vida humana”. A presidente da ANEM passa a discussão do reino da Ciência para o reino da metáfora, de forma a levantar dúvidas sobre este problema e, a meu ver, afirmar uma posição sem se comprometer com a mesma.

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No entanto, o conhecimento científico e médico são muito claros: a vida humana inicia-se no momento da fecundação (onde todos os elementos genéticos e todo o potencial para se ser humano já estão presentes) e termina com a morte cerebral. Assim, no intervalo que decorre entre estes dois momentos-chave não há mais ou menos vida, nem mais ou menos humanidade: há vida humana!

Aliás, aquilo que é subscrito por esta lei não é, como refere a presidente da ANEM, uma mera redefinição do conceito de vida humana. O legislador afirma que, havendo vida, esta pode perder dignidade e tornar-se disponível. Ora, isto é falso. Uma vida não é menos digna nem, como parece ser sugerido pelo artigo de Mar Mateus Costa, é menos vida devido às circunstâncias que a rodeiam ou ao sofrimento a que, a dado momento, possa estar sujeita. Não cabe sequer ao médico o poder que lhe é agora outorgado de afirmar que alguma vida é passível de disposição.

De facto, como sugere a presidente da ANEM, o currículo das Escolas Médicas pode e deve ser alterado para que olhemos para a vida humana, não apenas de forma científica (embora esta seja fundamental para discernir o seu começo e o seu término), mas com o espanto e o respeito além-Ciência que merece; para que ao observar um doente vejamos, em primeiro lugar, uma pessoa; e para que, chegados ao final do curso de Medicina, não vejamos a vida humana como algo que possa ser diminuído, nem digamos que um ser humano possa estar “meramente vivo” (como se estar vivo e ser- se humano pudessem ser considerados, em alguma altura, conceitos menores).

Sim, é verdade que, como classe e como sociedade, ainda temos medo de nos depararmos com o sofrimento e a morte. Altere-se, pois, o que se tiver que alterar nas faculdades de Medicina, de modo a redescobrirmos o valor da compaixão nesses momentos decisivos, a humildade de confortar ao invés de tratar a todo o custo e a importância do acompanhamento dos sós e dos sofredores. Ensinar para a morte é o exacto oposto de ensinar a matar! Nunca, em qualquer circunstância, devem os nossos professores, mestres e tutores sugerir que há momentos em que o valor da vida humana é diminuído, que podemos alterar este conceito, ou que podemos matar alguém, ainda que a seu pedido. Tal seria um verdadeiro atentado à arte médica, à relação médico- doente e ao princípio do “máximo respeito”.

Depois do parecer negativo de tantas ordens profissionais ligadas à área da saúde, incluindo o da Ordem dos Médicos, o que espera a ANEM para, de forma clara e assertiva, rejeitar a prática da eutanásia?

A dignidade, a inviolabilidade e o próprio conceito de vida humana não se redefinem. Reflectem-se, sentem-se, observam-se nas acções dos médicos, desde a Grécia Antiga até Genebra, desde Hipócrates até aos estudantes de Medicina do século XXI.