Como vimos no artigo anterior (Observador, 13/maio/2018), o Estado foi incapaz de manter um sistema binário de ensino superior operacional. Anunciado por Veiga Simão em 1971, foi aprovado como Lei depois de dois anos de estudos, mas só chegou ao terreno na década de 1980 como escape à enorme pressão da procura estudantil a que as universidades não conseguiam responder.

Com o virar do século entramos num período de estabilização da procura estudantil e de crescimento económico demasiado anémico para alimentar as expectativas da população. Para o ensino superior, isto significou orçamentos cada vez mais restritivos e uma concorrência, nem sempre muito saudável, pela incapacidade de jogar na diferenciação e na qualidade. Aqui qualidade tem de ser medida pela relação entre as expectativas (dos estudantes e das famílias) e o resultado da educação oferecida conducente a um grau académico ou a outro diploma.

No ensino superior massificado, as expectativas dos estudantes são muito diversas e a sua satisfação exigiria a afirmação de missões muito diferentes com esta diferenciação a manifestar-se no conteúdo dos cursos e no ambiente de aprendizagem, em toda a experiência proporcionada aos estudantes. Apesar da enorme diversidade dos estudantes que hoje chegam ao ensino superior e da óbvia diferença entre as experiências de aprendizagem oferecidas e vividas em cada instituição e em cada curso, tem sido muito difícil assumir esta diferença na proposta feita aos estudantes e na imagem passada aos empregadores dos diplomados.

O ideal de instituição de ensino superior manteve-se cristalizado na universidade de Humboldt ou de Newman sem ser capaz de propor um ideal utilitarista que satisfaça a ambição de uma crescente maioria dos estudantes. O estudante procura uma alegre passagem à vida adulta e autónoma; a família procura oferecer uma “formatura”, um diploma que garanta ao seu jovem uma vida estável e feliz, preferentemente com a garantia de emprego para a vida e uma carreira de ascensão segura.

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Um título de “doutor” ou “engenheiro” parece ainda satisfazer essa expectativa embora a realidade do mercado de trabalho seja bem diferente e a maioria já não tenha lugar na administração pública e tenha de aceitar um salário de 1,5 a 2 vezes o mínimo não qualificado sem garantias nem expectativas de progressão. Terminou a garantia de ascensão social prometida por um diploma, o que só era possível num quadro de acesso restrito e crescimento rápido da economia.

Para uma minoria, uma nova elite, a “inutilidade” da velha universidade idealizada ainda é suficiente para responder à sua ambição intelectual atual na certeza despreocupada de que os seus méritos extraordinários acabarão por vir a ser reconhecidos nem que, para isso, tenha de vir a fazer uma formação posterior. Para a grande maioria, esse percurso é de clara frustração intelectual e desmotivação pessoal. E esta frustração só será agravada quando verifiquem que o diploma obtido não tem grande valor num mercado de trabalho mais competitivo. Para alguns, a rede de contactos sociais e familiares será suficiente para abrir as desejadas portas a um futuro tão sólido como o da geração anterior. Para muitos outros, resta o desencanto. E são estes os que esperavam do ensino superior a abertura de novas oportunidades.

Mesmo depois de ter falhado na consolidação de um sistema binário, o Estado tem de garantir que o ensino superior oferece percursos diferentes para satisfazer as diferentes ambições dos estudantes e das famílias. A exemplo de muitos países europeus e da América do Norte, temos hoje três opções de entrada, para cursos de TeSP (Técnico Superior Profissional), para Licenciatura profissionalizante e para Mestrado Integrado ou Licenciatura conducente a um Mestrado profissionalizante. Só às universidades foi autorizada a oferta de Mestrados Integrados. As licenciaturas profissionalizantes são características do ensino politécnico, mas muitas licenciaturas universitárias não renunciam a este objetivo na designação e, aparentemente, no conteúdo e objetivos.

A seleção de acesso é feita por um Concurso Nacional de Acesso que é relevante para a maioria das licenciaturas universitárias e por uma variedade de concursos locais, organizados por cada instituição, que são dominantes para a maioria das licenciaturas politécnicas e a única via para os cursos de TeSP. Duas linhas de reforma estão anunciadas, no acesso e na quase extinção dos Mestrados Integrados. Com a autorização a dar aos institutos politécnicos a oferecer doutoramentos, os fundamentos do sistema binário são eliminados. Passaremos a viver num sistema unitário. Ainda não será no nome, mas lá chegaremos rapidamente. Interessa antecipar as consequências.

As diferenças entre uma licenciatura universitária e politécnica já eram mal compreendidas pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores. No quadro legal estabelecido em 2006 com o chamado processo de Bolonha (Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de março) pretendeu-se criar um tipo unificado de licenciatura e de mestrado, embora mantendo requisitos diferentes para o corpo docente. Depois estabelece-se que “no ensino politécnico, o ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado deve valorizar especialmente a formação que visa o exercício de uma atividade de carácter profissional, assegurando aos estudantes uma componente de aplicação dos conhecimentos e saberes adquiridos às atividades concretas do respetivo perfil profissional”, mas não há nenhuma imposição paralela para as universidades.

Apesar das diferenças expressas na Lei de Bases e no RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior), este quadro legal não deu força à A3ES (Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior) para induzir diferenças no ensino ministrado em universidades e institutos politécnicos. O fim do sistema binário pode assim entender-se como decorrendo naturalmente da legislação de 2006 e da progressiva adaptação que as instituições foram fazendo. Há hoje licenciaturas universitárias em tema específico que nuns casos dizem ter o objetivo exclusivo de prosseguir estudos num mestrado e noutros pretendem dar uma habilitação para o exercício imediato de uma profissão. Restam poucas instituições que evitam ainda uma designação aparentemente profissional para licenciaturas destinadas ao prosseguimento de estudos.

Não sendo as diferenças entre os cursos oferecidos hoje no ensino superior refletidas nas suas designações, resta o tipo de candidatos admitidos e nesta área há diferenças muito significativas. Entre duas licenciaturas com a mesma designação que num caso admite apenas (ou quase) candidatos que passaram pelo CNA com bom registo e outra que só admite (ou quase) candidatos através de concursos locais a diferença de preparação é enorme e tem de refletir-se no nível de exigência posto nas disciplinas propostas nos primeiros anos, com esta diferença a propagar-se ao longo do curso. Para quem conhece bem o sistema, estas diferenças são conhecidas, mas nem sempre assim é para os candidatos e para as famílias, especialmente para famílias de primeira geração no ensino superior.

Poderia pensar-se que as instituições iriam estimular a competição pelos melhores estudantes como acontece em alguns países onde é pública e bem compreendida pela sociedade a diferença de requisitos de admissão. Mas em Portugal, a sobrevivência e, se possível, o crescimento do número de estudantes é mais importante do que o nível académico oferecido. Esta preocupação aliada à desejável preocupação com o sucesso dos candidatos admitidos leva a que raramente haja uma política institucional de posicionamento do nível académico dos cursos.

A nível europeu, a situação é variável. No Reino Unido, há um reconhecimento generalizado do diferente nível académico das instituições e é sabido que o valor de um grau académico está muito ligado à instituição que o confere. Na França, o sistema de Grandes Écoles mantém-se em pleno pelo que também há um forte reconhecimento do valor da instituição conferente do grau. Nos países do centro, norte e leste europeu, a força da tradição profissional leva a que seja mais valorizada a linha de formação profissionalizante conferido pelo sistema politécnico (ou de universidades de ciências aplicadas como têm vindo a querer ser designadas).

Com a evolução aqui descrita, Portugal junta-se à Espanha que abandonou em 2014 (com uma dolorosa e tardia adaptação ao modelo de Bolonha) os ciclos curtos que se tinham mantido em escolas autónomas dentro da maioria das universidades. A Espanha adotou um ciclo básico universitário de 4 anos “orientado à preparação de uma profissão”. Em Portugal bastarão 3 anos num ciclo profissionalizante único. Aparentemente, a Medicina e a Arquitetura estarão a salvo. As engenharias de 5 anos ir-se-ão perdendo na medida em que o mercado de trabalho vá atraindo os licenciados em engenharia (3 anos), mesmo que a um nível salarial até aos dois salários mínimos, e não surja um mercado forte e dinâmico que diferencie a remuneração do engenheiro de 5 anos.

Neste novo modelo, a educação superior portuguesa não vai competir com os nossos vizinhos espanhóis ou franceses, nem com os brasileiros onde o mestrado mantém o cariz de investigação de raiz americana. Mas talvez seja suficiente para o novo emprego “qualificado” que tem sido gerado em Portugal e muito celebrado pelos agentes políticos.

Ex-secretário de Estado do Ensino Superior