Completam-se agora 20 anos da assinatura da Declaração de Bolonha, uma proposta subscrita pelos ministros da educação de 29 países europeus que se propunham objetivos que não pareciam simples,

  • Adoção de um sistema com graus académicos de fácil equivalência
  • Adoção de um sistema baseado essencialmente em duas fases principais
  • Criação de um sistema de créditos
  • Incentivo à mobilidade
  • Incentivo à cooperação Europeia na garantia da qualidade
  • Promoção das necessárias dimensões a nível Europeu no campo do ensino superior.

Surpreendentemente, estas intenções vieram a concretizar-se e o seu âmbito alargou-se progressivamente a 47 países e inclui hoje representantes de estudantes, de reitores e de presidentes de institutos politécnicos.

Bolonha foi um tremendo êxito. Da angústia política de um ministro francês (Claude Allègre), o truque de uma assinatura com mais três ministros (Itália, Alemanha e Reino Unido em 1998 (aquando da celebração dos 800 anos da Sorbonne) para uso interno foi fogo que chegou a toda a Europa e mais além. Não é comum podermos revisitar 20 anos depois os objetivos políticos de uma simples declaração e concluir, sem grande ofensa à verdade, que foram plenamente cumpridos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando os objetivos iniciais são dados por adquiridos, vemos as limitações que é preciso esconder para que formalmente possamos apresentar apenas o sucesso. E Portugal não é um caso de grande sucesso no efeito transformador de Bolonha. Cada país utilizou este impulso externo para modernizar o seu sistema de ensino superior. O caminho seguido por Portugal merece ser questionado.

Adoção de um sistema com graus académicos de fácil equivalência.

A França atingiu o seu objetivo de tornar o seu sistema de ensino superior mais compreensível do exterior sem ter de mexer em nada de essencial. Todo o edifício anterior foi preservado, assinalando-se agora os níveis de 1º ciclo, de 2º ciclo e de 3º ciclo. A maitrise continua; a passagem da maitrise para o segundo ano do mestrado não é para toda a gente; as grandes écoles mantêm o sistema de 2+3 com um concurso muito duro para a entrada no +3. Tenho consciência de que esta visão otimista não será partilhada por muitos governantes franceses que tentaram levar mais longe a reestruturação do sistema de graus e diplomas. Também sei que a recente decisão (de Macron) de extinguir a ENA (École Nationale d’Administration) é uma resposta, talvez oportunista, ao sentimento de repulsa a um sistema bastante elitista de educação. E, contudo, foi este sistema que manteve a França que conhecemos e tem permitido pagar um estado social muito dispendioso.

Adoção de um sistema baseado essencialmente em duas fases principais

O objetivo de compreensão dos três ciclos de graduação, L-M-D, foi conseguido. Em geral não houve grandes traumas, sendo o sistema anterior de cada país vertido na nova linguagem. Dentro deste quadro muito geral, cada país tentou aproveitar o impulso externo de reforma para atingir objetivos próprios. Em Portugal, optamos, caso possivelmente único na Europa, por mudar a designação do grau académico ao nível +3 (licenciatura para o antigo bacharelato), mantendo-se até hoje uma indefinição quanto aos seus objetivos no mercado de trabalho. O sistema binário português foi defendido por todos os governos desde 1980, mas esteve sempre sob ataque e a diferenciação foi ainda mais esbatida com a reforma de Bolonha (2007). E a recente extinção dos mestrados integrados de engenharia vai provavelmente agravar esta realidade. De facto, a figura de Mestrado Integrado era o único “privilégio” das universidades na oferta inicial. Os novos primeiros ciclos vão rapidamente aproximar-se das licenciaturas politécnicas como já acontece com os primeiros ciclos de engenharia de muitas universidades. Queremos caminhar para um sistema em que a (nova) licenciatura é o nível preferencial de profissionalização? E queremos adotar esta estratégia, quer para os cursos universitários, quer para os cursos politécnicos? A diferenciação feita nos textos legais é muito ténue e a sua aplicação pelo regulador (A3ES) é claramente insuficiente. Acreditaremos ainda na possibilidade de manter um sistema binário para as engenharias?

A Espanha teve uma história especial. Não foi conseguido consenso político e foi preciso chamar ao governo um presidente do CRUE na fase final do Governo Zapatero para se fazer uma conversão rápida, ainda que muito atrasada. E a controvérsia continua. Foram extintos os antigos diplomas de 3 anos, os antigos ciclos curtos de engenharia, fazendo-se convergir todos os cursos (1º ciclo) para 4 anos com a possibilidade de um segundo ciclo de 1 ano. Uma tentativa interessante de aproximar do sistema americano, mas à distância do Atlântico… O sistema é equilibrado pela pujança dos ciclos curtos de 2 anos equivalentes ao nosso curso de TeSP, Técnico Superior Profissional. Note-se que, na população de 25 a 34 anos[1], Portugal tinha em 2017 mais licenciados (ou com grau mais alto) do que a Espanha, a França ou a Alemanha. Mas faltava-nos a força dos ciclos profissionalizantes de 2 anos destes países. Na tradição germânica (Alemanha, Holanda, etc) a força e o prestígio da formação profissional ainda não foram enquadrados nesta linguagem de ciclos curtos.

Percentagem da população de 25 a 34 anos com um grau ou diploma de ensino superior

(OCDE, Education at a Glance, 2018, da Fig. A1.2)

Criação de um sistema de créditos

O sistema de créditos foi aceite, embora estejamos longe de um entendimento único do que vale uma unidade. Faz-se a medida pela noção de trabalho do estudante, mas não há nenhum esforço de aferição dessa realidade. A ideia nacional de que os créditos são transferíveis entre quaisquer instituições de ensino superior é simplista e esconde uma realidade mais complexa. Quando aplicada cegamente, causa distorções graves no progresso dos estudantes em mobilidade e na credibilidade dos diplomas concedidos. Os maus exemplos abundam em Portugal.

Incentivo à mobilidade

O programa Erasmus é porventura o maior êxito da União Europeia, com enorme adesão dos jovens estudantes. Para além da preocupação política, podemos dizer que a adesão dos jovens é fruto da realidade social contemporânea, da maior facilidade da mobilidade temporária ou permanente e da aspiração de sempre dos mais jovens a alargar os seus horizontes.

Incentivo à cooperação Europeia na garantia da qualidade

Formalmente, tudo funciona bem, embora com tensões fortes. A acreditação transfronteiriça foi travada, mantendo-se a soberania nacional ou regional sobre as agências.

Como todos os sistemas de qualidade, também a regulação da qualidade do ensino superior não vai certamente cristalizar na forma em que foi introduzida em Portugal. Estamos na fase de verificação da conformidade que tem um custo elevado para uma simples verificação de procedimentos (na melhor visão de uma realidade mais complexa). Não poderemos deixar de atender à necessidade de passar daqui para uma regulação da qualidade das aprendizagens (ou das competências, se preferirmos esta linguagem). Atualmente, os sistemas nacionais de verificação das aprendizagens são frágeis e será certamente muito difícil chegar a um acordo transnacional. O AHELO (da OCDE) falhou e, noutro plano, o MULTIRANK é ridiculamente mantido pela hipocrisia do financiador comprometido e do financiado interessado. O sistema de verificação da qualidade dos procedimentos permite e talvez incentive a divergência da qualidade das aprendizagens, pelo que o passo seguinte será inevitável. Apesar das dificuldades, é urgente passarmos à fase seguinte.

Promoção das necessárias dimensões a nível Europeu no campo do ensino superior

A cooperação interinstitucional tem crescido e a queda das fronteiras e a mobilidade crescente de pessoas e ideias é certamente um forte incentivo para que este caminho continue a ser trilhado. Pessoalmente, tenho muitas dúvidas sobre o mérito das duplas ou múltiplas certificações como têm sido incentivadas pelo financiamento da União Europeia. Nem sempre a transparência para estudantes e empregadores é mantida ao nível desejável, para que o valor da experiência social seja realmente complementado por um valor académico que nem sempre está assegurado.

Não devemos omitir que estas propostas chegaram às instituições de ensino superior embrulhadas numa linguagem de um eduquês requentado de décadas anteriores. Os financiamentos da União Europeia alimentaram este exercício de uma forma nem sempre muito transparente, mas firmemente direcionado. Estou a falar dos projetos Tuning[2]. No ensino superior, esta linguagem apareceu como novidade e foi bem aceite pelo que tem de senso comum. Todos passaram a falar de competências e de centrar o processo educativo no estudante. Em Portugal, o ano de 2007 foi o culminar deste exercício de modernização da linguagem dos nossos docentes. De um momento para o outro deixaram de existir disciplinas ou cadeiras para tudo se encaixar em unidades curriculares. E deixou de haver conhecimentos e experiências a transmitir e avaliar para só se discutirem “competências”. Foi uma belíssima experiência de dinamismo das nossas instituições que deram prova de uma enorme capacidade de transformação. Infelizmente, foi fogo de pouca dura. Como apareceu, a paixão pela modernidade também desapareceu sem deixar grandes sequelas negativas. Os danos que estas teorias tinham causado (e estão a causar) no ensino básico e secundário não afetaram o superior. Os docentes tomaram o que havia de senso comum na “nova” narrativa de aprendizagem (sem ensino!) mas não se sentiram forçados a fazer a aplicação cega da teoria. Um belo exemplo do que pode a autonomia universitária e a capacidade crítica dos seus docentes.

Se merece nota positiva a resistência aos eventuais malefícios de uma teoria educativa nunca demonstrada empiricamente, já temos de criticar o pouco esforço posto, em geral, para adaptar os métodos de trabalho propostos a estudantes que são diferentes neste tempo de sociedade de informação. Ao mesmo tempo, as instituições estiveram pressionadas para conseguirem ganhos de eficiência (financeira) num quadro totalmente rígido de gestão de pessoal e de gestão do processo educativo. A poupança possível estava na redução do tempo semanal de aulas (ou no aumento da dimensão das turmas). Para muitos, a redução do tempo semanal de umas 24 horas para cerca de 21 foi associado à “modernização” de Bolonha. E já se prepara hoje uma segunda onda de redução das 21 horas para as 18 horas semanais. E até se vão buscar bons exemplos a Berkeley ou a Oxford, esquecendo os estudantes que lá são admitidos e os apoios (não contabilizados) que lá são oferecidos.

Em Portugal, temos um falso sistema de dois ciclos de licenciatura e mestrado porque se está a generalizar a prática de admitir de facto a mestrado estudantes que não concluíram a licenciatura. Estranho? Não em Portugal! Sendo possível fazer unidades curriculares avulsas, porque não incentivar os estudantes com “cadeiras atrasadas” a irem fazendo o mestrado com a garantia (informal) de que todas virão a ser creditadas. Assim se impede a saída do estudante para outra instituição e se aumenta o rendimento de propinas. Aí está uma inovação que os subscritores de Bolonha não imaginaram. Uma inovação que talvez outros países quererão copiar!

Para concluir, interessa recordar a avaliação muito recente de uma autora italiana:

According to the BFUG report (2015), “the original European vision … has often been interpreted in different ways when used as leverage for national reforms”, possibly because it “was not well communicated to or not well understood by all stakeholders in higher education and by other societal actors in the participating countries”[3].

Esta autora aponta duas falhas que serão certamente partilhadas por muitos outros observadores.

  1. O objetivo da relevância do 1º ciclo no mercado de trabalho. Logo no relatório de preparação da a reunião dos ministros em 2001[4], foi sentida a necessidade de notar que “not that first degrees should be just a preparation for a particular well-defined profession, but rather that certain dimensions required for nearly all future professional activities (transversal skills) should receive due attention”. Com o fim dos mestrados integrados, parece estarmos hoje a seguir esta interpretação “errada” da pureza inicial de Bolonha. Isto não significa que a figura de “mestrado integrado” deva ser consagrada como imutável. O que deveria ser garantido é que nem todos os primeiros ciclos têm a intenção de preparar diretamente para o mercado de trabalho como acontecerá com os primeiros ciclos de engenharia que dão direito automático a inscrição em qualquer das duas ordens profissionais do setor.
  2. Adoção de um sistema de créditos ECTS. O sistema pretendia estabelecer que 60 créditos por ano fossem atribuídos às unidades curriculares em função da carga de trabalho do estudante para atingir os objetivos da unidade. Na prática olhou-se mais para uma carga de trabalho projetada (ou imaginada) e deu-se muito pouca atenção aos objetivos de aprendizagem. Em muitos casos, será mais relevante o tempo letivo (de contacto) ou a suposta relevância do curso. São muito raros os estudos empíricos, a posteriori, da realidade vista do ângulo do estudante.

Porto, 20/junho/2019

[1] OECD, Education at a Glance 2018, Fig. A1.2
[2] Tuning, Educational Structures in Europe
[3] IN “From 1999 to 2019: 20 years of European debate, development, and achievements”, Maria Sticchi Damiani, doi, cita: “The Bologna Process Revisited: The Future of the European Higher Education Area” (Bfug report, Yerevan, 2015).

[4] Haug Guy and Christian Tauch, “Trends in Learning Structures in Higher Education (II). Follow-up Report prepared for the Salamanca and Prague Conferences of March/May 2001” (April 2001).

Universidade do Porto