Nicola Sturgeon, primeira-ministra da Escócia, renunciou no dia 15 de fevereiro à liderança do governo escocês e ao cargo de líder do Partido Nacional Escocês (Scottish National Party, SNP), o qual defende uma Escócia independente do Reino Unido e a aproximação ao projeto europeu, num momento crucial para o movimento independentista da região – e simultaneamente conturbado na atual ação política a nível regional e nacional (Reino Unido), em razão de questões relacionadas com a administração política da região (Devolution).

Sturgeon referiu, no seu discurso de renúncia, que “na minha cabeça e no meu coração, sei que a hora é agora, que é certa para mim, para o meu partido e país”, acrescentando que “a natureza e a forma do discurso político moderno significam que há uma intensidade muito maior – ouso dizer, brutalidade – na vida de um político”. Contudo, a saída deixa o SNP sem uma figura que tenha um peso idêntico, capaz de substituir a ainda primeira-ministra e líder do partido e de agregar e conciliar todo o movimento independentista, que à altura da renúncia de Sturgeon apresentava um apoio de 46%.

Tendo terminado o prazo de apresentação de candidatos à liderança do SNP neste último dia 24 de fevereiro, três candidatos disputarão a liderança do partido e o cargo de primeiro-ministro da Escócia: Humza Yousaf, atual secretário da Saúde e Assistência Social, sucessor favorito nas fileiras do SNP e apoiado por Sturgeon; Kate Forbes, secretária das Finanças (atualmente em licença-maternidade), candidata que tem apresentado posições conservadoras em assuntos como o aborto e os direitos LGBTQIA+ (e, portanto, contrárias às políticas e às estruturas do SNP); e Ash Regan, antiga secretária para a Segurança, que poderá fazer frente a Yousaf pela sua posição contra a Lei de Reforma do Reconhecimento de Género na Escócia. Os candidatos apresentam, assim, perfis que definem uma continuidade ou ruturas ao mandato de Sturgeon, que continuará no cargo até que um(a) sucessor(a) seja nomeado(a) a 27 de março.

Poucas semanas antes da renúncia da primeira-ministra, o governo do Reino Unido vetou o projeto de Lei de Reforma sobre o Reconhecimento de Género, apresentado e aprovado no Parlamento escocês (Holyrood), que simplificaria a mulheres e homens trans proceder à mudança de género a nível legal, por meio da solicitação de um certificado de reconhecimento de género. A ação não só levou a um debate mais generalizado na sociedade e política britânicas sobre os direitos de pessoas trans, como ocasionou o ressurgimento mais premente do debate sobre a autonomia política da Escócia, consagrada pela restituição de poderes em 1998 (Devolution).

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O veto por parte do governo britânico, liderado por Rishi Sunak, advém de uma mudança na ação e posição dos conservadores nos últimos anos, passando de uma posição mais liberal em relação a temas como os direitos de pessoas trans (e temas correlatos) para uma constante crítica à implementação e prossecução de políticas de direitos humanos. Alguns defensores do projeto de lei escocês referiram que esse veto é mais uma manobra por parte do Partido Conservador britânico (Tories) a fim de desviar as atenções dos problemas com que a própria ação do governo se tem deparado ao longo dos últimos anos.

A Escócia e o seu governo, em termos de autonomia política, possuem de facto o controlo sobre assuntos em áreas como a educação, justiça e saúde, nos quais questões de género estão nas mãos dos legisladores escocês; porém, o governo de Rishi Sunak advogou que o referido projeto de lei nutre implicações além do território circunscrito da região. Alister Jack, ministro do governo de Sunak para a Escócia, expôs a sua preocupação e a do governo central, mencionando os “efeitos adversos” que a lei poderia implicar nos “clubes, associações e escolas de um único sexo ou até [no que diz respeito às] proteções como a igualdade salarial”. Nesse ensejo, o primeiro-ministro britânico também expressou as suas preocupações, reforçando que ela poderia causar “impactos em todo o Reino Unido”, reforçando que o governo pretende “garantir a segurança de mulheres e crianças”.

Anteriormente ao veto do governo britânico à lei de reconhecimento de género, o governo da Escócia sofrera outro duro golpe na administração política da região: o Supremo Tribunal britânico decidiu, em novembro de 2022, que a Escócia não poderia realizar um segundo referendo quanto à independência sem a autorização expressa do governo britânico – desde Theresa May, passando por Boris Johnson, Liz Truss e pelo próprio Rishi Sunak, todos os primeiros-ministros descartaram o apoio e/ou autorização para a  sua realização. Em 2014, durante o último referendo, o movimento separatista na Escócia (liderado pelo SNP) foi derrotado: os eleitores rejeitaram a saída do Reino Unido com 55% contra 45%. A partir desse momento, Nicola Sturgeon entrou como uma figura política incontestável no fortalecimento do próprio movimento, auxiliada pela implementação de políticas sociais progressistas de grande peso e reconhecimento interno e externo. Igualmente, o referendo para o Brexit, em 2016, trouxe um novo fôlego e apoio à questão independentista, já que os escoceses se recusaram a sair da União Europeia, permitindo o crescimento do debate sobre o lugar da Escócia num Reino que aparenta estar cada vez mais desunido.

Com a renúncia de Sturgeon, um possível vazio de poder no seio do SNP poderá ocorrer no Parlamento britânico (Westminster), não só porque dois dos três candidatos à sucessão (Regan e Forbes) defendem uma rutura parcial ou plena à ação política prosseguida até ao momento, mas sobretudo por essa decisão antever um possível reforço do Partido Trabalhista britânico (Labour), liderado por Keir Starmer, que procura substituir o Partido Conservador nos destinos do Reino Unido. Internamente, o Labour acredita que poderá alcançar uma oportunidade a nível nacional para reconquistar os assentos em Westminster, ocupados hoje pelo SNP (conquistou 56 dos 59 lugares atribuídos à Escócia para o Parlamento britânico, retirando a hegemonia do Labour na cena política escocesa). As sondagens apresentadas pelo YouGov sobre as intenções de votos para as eleições gerais britânicas, previstas para ocorrer em finais de 2024/início de 2025, apontam para a vitória dos trabalhistas com 50% contra os 22% dos Tories; a desaprovação do governo conservador britânico corrobora as intenções de voto apresentadas pelas últimas sondagens: 67% de desaprovação contra 14% de aprovação.

Em contraponto, a saída de Sturgeon pode trazer novos ímpetos à questão sobre a independência – para ela, o mandato democrático para a realização de um novo referendo é “inegável” – e, de igual forma, reforçar a presença do SNP como força política de grande relevância no cenário político escocês e britânico – apesar de os candidatos possuírem perfis e posições distintas, o mais provável é que Humza Yousaf, candidato com apoio de peso dentro do SNP, prossiga um reforço da política que, durante mais de oito anos, Sturgeon encabeçou na Escócia.

(Texto redigido de acordo com o novo acordo ortográfico.)