Afirmei, no meu anterior artigo no Observador, que a nossa esquerda woke só tem olhos para o suposto racismo estrutural dos portugueses. Essa é uma das suas ideias fixas. Outra é a escravatura dos negros, desvalorizando a dos outros povos ou a dos próprios negros, desde que não haja sido feita por europeus e americanos — ocidentais, numa palavra. É por isso, também, que as pessoas dessa área política e ideológica costumam ser indiferentes a formas acentuadas ou extremas de exploração e sujeição que não sejam essa forma específica de tráfico e escravidão de africanos.
Esta regra tem excepções, claro. A antropóloga Cristiana Bastos escreveu, há cerca de um ano, um artigo sobre os malefícios da economia de plantação no qual sugeriu um paralelo entre as actuais condições de exploração do trabalho de imigrantes, em Odemira e outros pontos do país, e as que muitos milhares de portugueses enfrentaram em meados dos século XIX, na Guiana e nas Caraíbas britânicas. A autora explicou, adequadamente, que depois da abolição do tráfico de escravos e da escravidão nas colónias inglesas foi necessário obter mão-de-obra por outros meios para prover à carência de braços, em particular no duríssimo trabalho da safra açucareira. Os britânicos foram encontrar essa mão-de-obra na Índia e em várias regiões assoladas pela pobreza, uma das quais a ilha da Madeira. Foram dezenas de milhar de madeirenses que, como escreveu a antropóloga, “se sujeitaram a condições extremas nas plantações de açúcar e muitos ali perderam a vida”.
O artigo de Cristiana Bastos teve o mérito de chamar a atenção para aspectos mal conhecidos da história da exploração do trabalho, mas estranhamente não produziu grande eco nem suscitou desenvolvimentos entre a nossa esquerda woke, que tanto gosta de bater no peito, indignada com as injustiças do passado. E, no entanto, há muito terreno para levar essa história mais adiante, e para assinalar que não foram só as colónias britânicas que recorreram ao trabalho quase escravo de portugueses pobres. O Brasil fê-lo em larga escala, na mesma época, e o fenómeno assumiu tal dimensão e tais facetas que ficou, então, conhecido por “escravatura branca”, ainda que, técnica e juridicamente não fosse tráfico nem escravidão. Era, todavia, dessa forma que aparecia referido nos jornais portugueses e brasileiros e que se abordava e debatia nas nossas Cortes. E muito compreensivelmente, diga-se, pois as condições de transporte através do Atlântico e de trabalho, nas fazendas e plantações, faziam lembrar as do tráfico transatlântico de escravos e da escravidão colonial dos negros.
Os navios utilizados no transporte desses emigrantes para o Brasil (e outros pontos das Américas) estavam equipados com vários dos apetrechos que se usavam no tráfico negreiro e que eram proibidos pela legislação anti-tráfico. A própria relação entre a tonelagem desses navios e o número de passageiros transportados era, muitas vezes, equivalente à que se verificava nesse tráfico. A sobrelotação era um elemento omnipresente na travessia do Atlântico e as suas consequências podiam ser agravadas pelo tratamento a bordo. A título de exemplo refira-se que na galera Defensora, que em 1855 saíu sobrelotada do Porto, morreram 47 emigrantes, vítimas da fome e dos maus-tratos.
Os engajadores ao serviço de companhias de colonização brasileiras recebiam uma comissão por cada engajado. Estabeleciam contratos com os emigrantes em Portugal, pagavam-lhes a passagem, tratavam dos papéis necessários e ficavam com as suas vidas na mão. Por vezes, os próprios capitães dos navios angariavam trabalhadores para irem para o Brasil sem contrato fixo. As suas viagens eram feitas a crédito, estipulando-se que o seu custo seria suportado no ponto de chegada por quem viesse a contratar cada um dos emigrantes — que, já no Brasil, ficariam num depósito ou no porão do navio, esperando que alguém pagasse aos referidos capitães, ou seus representantes, a importância devida. Quem o fizesse, adquiria o direito de explorar o trabalho dos pobres expatriados durante um determinado período de tempo, o que se estabelecia mediante um acordo geralmente muito desfavorável aos recém-chegados. É que, vendo-se em situação desesperada, estes costumavam aceitar qualquer contrato que lhes propusessem, só para se verem livres da prisão em que se encontravam. Na descrição de um jornal brasileiro da época as coisas passavam-se assim: “O capitão desembarca, vai ao consignatário, começa a distribuir ou, para melhor dizer, começa a vender os escravos de nova espécie e quem desejasse um homem, uma criança, uma mulher, dava quarenta pesos, recebia um bilhete, ia a bordo, escolhia a dedo; podiam-se retalhar famílias à vontade.”
O próprio acto de escolha podia ser profundamente humilhante para os emigrantes. Muitas vezes o potencial empregador pedia às raparigas que levantassem os vestidos para mostrarem as pernas. Os rapazes imberbes podiam ser despidos para verificar que não tinham doenças. A alguns inspeccionava-se a boca e os dentes para aferir da idade e estado de saúde. Em suma, fazia-se com os emigrantes, dizia o mesmo jornal, “o mesmo que se costuma fazer com os escravos e animais, quando se querem vender”. Por fim, também as condições de exploração evocavam a escravidão pois os emigrantes podiam ser obrigados aos serviços mais pesados e chegavam a sofrer castigos físicos infamantes como os que se aplicavam aos escravos negros.
A “escravatura branca” era, na verdade, uma forma de trabalho forçado. Mas não era um caso pontual ou único, nem algo que apenas dissesse respeito a portugueses. No século XIX várias partes das Américas usaram macivamente essa forma de exploração do trabalho e recorreram em larga escala a trabalhadores indianos e chineses, os chamados cúlis:
Cuba terá recebido, entre 1847 e 1874, 125 mil cúlis chineses e se não recebeu mais foi porque 15 mil morreram no transporte de barco até à ilha espanhola. Apesar de serem formalmente trabalhadores livres, contratados por oito anos, esses cúlis eram praticamente escravos. Os seus contratos de trabalho não tinham cláusulas de repatriamento e nenhum deles conseguiria poupar o suficiente, dos salários pouco mais do que simbólicos que recebiam, para pagar uma viagem de retorno. Assim, os que sobreviviam ao prazo do contrato, e que ficavam livres mas sem modo de vida numa terra estranha, eram presos por vadiagem e forçados a assinar novo contrato. Mas havia pior do que isso. Os cúlis chineses que por essa altura eram transportados de Macau, através do Pacífico, para as costas do Peru e do Equador, para trabalharem nas minas ou na indústria do guano, raramente tinham a possibilidade de renovarem os seus contratos pois morriam em números assustadores, ao cabo de um ou dois anos de trabalho.
Só para as Américas, nos 80 anos que vão de 1838 a 1918, terão emigrado mais de um milhão de pessoas sujeitas a trabalho forçado vindas da Índia e da China. Se lhes juntarmos os africanos, os portugueses e outros europeus, os números duplicam. E triplicam ou quadriplicam se alargarmos a área geográfica de modo a incluir o Hawai, as ilhas Fidji, Samoa, a Austrália, a Malásia, a Birmânia, o Norte da Índia, o Ceilão e várias partes de África.
Portugal usou esse sistema de trabalhadores contratados a termo certo, mas, na prática, impossibilitados de voltar para casa, em várias partes de África, nomeadamente no arquipélago de São Tomé e Príncipe. Outros colonizadores europeus também o fizeram nos territórios que administravam. É claro que, ao contrário do que sucedia com a escravidão, estes indivíduos não eram, em bom rigor, propriedade de um senhor. Mas os seus serviços podiam ser vendidos e transmitidos por herança, e as condições de vida eram semelhantes, quando não mais penosas e desumanas, do que a escravidão havia sido.
Essa é a primeira conclusão que importa sublinhar. Uma segunda conclusão que convém nunca perder de vista é que não foram apenas os africanos a serem sujeitos a condições de trabalho duríssimas e degradantes. Ainda que com nuances, e em diferentes graduações, essa enorme desgraça tocou a muitos europeus e asiáticos, como os indentured servants britânicos e alemães — isto é, os trabalhadores vinculados que, nos séculos XVII e XVIII, se utilizaram em larga escala na Virgínia e outras colónias da América do Norte —, ou os cúlis chineses de que falei acima. No mundo colonial atlântico essa desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a pobreza e outras determinantes económicas do que com a cor da pele.