Choveu muito em Valência, e durante muito tempo. Em Chica, na região valenciana, foram medidos 491 mm em oito horas. Toda a água que precipitou numa zona extensa entre o mar e a serra formou um escoamento torrencial que se propagou pelas zonas mais baixas, ao longo dos leitos de rios e ribeiros, e transbordou em muitas áreas urbanas, como uma onda com mais de três metros de altura. Árvores, veículos, construções pouco seguras e detritos vários, encontradas pelo caminho, foram engolidos por este mar de água e transformaram-se em projéteis, destruindo tudo à sua frente. Pisos térreos, garagens e lojas são agora armadilhas mortais.
Após a catástrofe, a visão é apocalíptica. Centenas de vítimas esmagadas pelos escombros. Um número elevado, mas desconhecido, de desaparecidos. Destruição ser de estradas e caminhos de ferro. Escombros por todo o lado, amontoados ao longo do que deveriam leitos de rios. Esta situação, difícil de imaginar, foi precedida por avisos vermelhos da meteorologia espanhola, que não foram levados a sério. O fenómeno em si não é novo, e é tão conhecido em Espanha que os dirigentes políticos se lhe referem simplesmente como DANA, uma depressão em altitude que se isolou da corrente de jato e que ganhou “vida própria”, precipitando uma extraordinária quantidade de água num mesmo local, ampliada também pela interação com a topografia.
Não são as questões científicas, a relação com a mudança climática ou o impacto do urbanismo selvagem os aspetos para mim mais surpreendentes, mas sim a aterradora incapacidade dos políticos de lidar com a dimensão da catástrofe, mesmo perante as primeiras imagens que as televisões transmitiam do cenário dantesco que viviam muitas localidades da região de Valencia. E também não foi a ideologia o que esteve por detrás desta incapacidade, porque os governos central e autonómico, apesar das suas diferenças políticas, foram cegos, surdos e mudos. Esta incapacidade foi interpretada pelas comunidades valencianas como um sinal de desprezo e gerou desilusão e raiva.
Apesar do histórico de acontecimentos similares a primeira avaliação foi incrivelmente subvalorizada, o aviso tardio, o apoio insuficiente, e isso teve consequências.
As primeiras vinte e quatro horas a seguir a uma catástrofe são por vezes chamadas as “horas douradas” porque é o período durante o qual é maior a probabilidade de serem salvas pessoas presas debaixo de escombros. A situação real da falta de socorro neste período está bem expressa numa entrevista a um canal televisivo do comandante Paulo Alves. Afirma este que “nos primeiros dias, foram os voluntários que apareceram, mais ninguém …”. Algumas das vítimas, que estão agora a ser progressivamente identificadas, e que as famílias procuram incessantemente, morreram nas primeiras vinte e quatro horas. Por abandono.
Só ao fim de demasiados dias a realidade bateu à porta. O número de desaparecidos deixou de ser divulgado de forma clara, o número de vítimas mais incerto, o que à partida nos pareceria impossível numa região próspera da próspera Europa. Ao fim de quase uma semana a defesa espanhola deslocou muitos milhares de militares para apoiar as populações e preparou uma “morgue com capacidade para 400 corpos” e a Generalitat Valenciana pede ao governo um valor de 31,402 milhões de euros, cerca de cem vezes superior aos valores inicialmente adiantados pelo chefe do governo. Para se ter uma ideia da dimensão do desastre, saliente-se que o sistema segurador reconhece que terão sido destruídos cerca de 100 mil veículos. A decisão inicial de deslocar poucas centenas de militares é hoje vista como irresponsável.
Como chegámos aqui? Para que servem estações meteorológicas, radares, satélites, supercomputadores e talento se os avisos produzidos não impedem quem deve de prosseguir uma vida despreocupada, que nem as imagens devastadoras, transmitidas quase de imediato pelas televisões, conseguem interromper?
Contribuiu para esta situação a raridade relativa do fenómeno. Quando comparamos com a resposta dada na Florida ao furacão Milton, cujo destruição foi avaliada em 60 mil milhões de dólares e mais de uma dezena de vítimas confirmada, a diferença de comportamento é radical. O impacto do Milton foi mitigado por uma incrível operação de preparação, coordenada pelo governador da Florida, que determinou a movimentação de cerca de 6 milhões de pessoas em 11 condados, evacuação voluntária de mais nove áreas adjacentes, com foco nas construções menos resistentes e nas áreas mais sensíveis à inundação, as portagens foram desativadas e os corredores de evacuação geridos pelas autoridades de proteção civil. Também na Flórida, na localidade de Petersburg, foram medidos 450 mm num período de vinte e quatro horas, mas a mensagem “Run From The Water, Hide From The Wind” foi compreendida, e foi eficaz.
Contribuiu para esta situação a errada perceção que temos sobre os riscos associados à água. Vinte anos depois do grande tsunami de Sumatra que vitimou mais de duzentas mil pessoas, duas situações então vividas repetem-se hoje com igual dramatismo: a onda destruidora que atingiu de surpresa as comunidades muito longe do epicentro, que mal sentiram o sismo, e estavam despreocupadas, é agora substituída pelo assombro das populações submergidas por uma onda canalizada ao longo de um leito de rio de que não estavam à espera, dada a intensidade da chuva que caía à sua volta. Vendo a água a subir constantemente nas ruas muitos pensaram que seriam capazes de lhe resistir, tal como as populações do Indico observaram há vinte anos a subida progressiva do mar com a sensação errada de que poderiam facilmente fugir. Em nenhum caso tal é possível: a energia transportada por um fluxo de água que arrasta detritos é demolidora, e ninguém corre consistentemente mais depressa do que uma onda de tsunami ou uma onda de inundação rápida.
A surpresa das pessoas pode ser reduzida por melhor informação sobre as previsões meteorológicas e o seu impacto potencial, e pela comunicação clara do que fazer em caso de precipitação extrema. A articulação entre a previsão e a ação de proteção civil deve ser questionada: é claro que para o quadro meteorológico previsto deveria ter sido aconselhada a deslocação para locais mais elevados e, dentro de um edifício, para os pisos superiores. Com o previsível aumento de episódios de precipitação extrema, estes comportamentos têm de se tornar intuitivos, e devem ser executados com prudência, mas sem demora.
A dificuldade em reagir a um aviso por parte dos decisores, e a recusa em ver de imediato a verdadeira dimensão do que já foi considerado o maior desastre natural de Espanha dos últimos setenta anos, remete-nos para um problema seguramente mais profundo e que está relacionado com um processo psicológico de negação: como podemos olhar para uma catástrofe e não a ver?