Porosidades, fenestrações, interstícios, espaços em branco. Permitem, compassivamente, satisfazer a curiosidade pueril que sempre me agitou a mente. São pórticos que me permitem assomar, qual detective munido de uma lupa muito própria, para uma dimensão distinta daquela onde me encontro e de onde patrulho a passagem do tempo. O microscópio e o telescópio, enquanto instrumentos amplificadores da realidade que os meus olhos (mesmo que cobertos pela lente espessa dos meus óculos) conseguem abarcar e analisar, permitem assomar-me de outro modo através de porosidades, fenestrações e interstícios e por conseguinte ver e olhar o que está do lado de lá, noutra dimensão. Talvez por isto a biologia molecular e celular, a genómica e a astronomia me tenham sempre fascinado…

Há que permeabilizar pórticos. Sempre.

Abro a janela e horizontalizo os estores metálicos banhados a tinta branca. Permeabilizo. Filtra-se a luz que se derrama e coalha pela sala. Ganha corpo o sopro do vento que entoa melodias por decifrar. Cá dentro a radiação aquece as olivas dos estetoscópios, faz refulgir as hastes metálicas dos óculos e pinta em tons acobreados os parcos centímetros de pele que o traje verde (será que se sonha sem estar de pijama, neste caso cirúrgico?) não cobre. Os sopros anfóricos mesclam-se com o som dos dedos revestidos a látex que primem e comprimem teclas de teclados revestidos a plástico. Abro a porta que franqueia a passagem para o corredor. Lá fora, cá dentro (nunca fui dado a Geografias e Toponímias, perdoem-me) passam mais anjos verdes, com os caracóis cobertos por toucas cor de musgo, máscaras cor de pérola, batas cor de oceano que no dorso se abrem como asas, e sapatos multicolores (não é vasta a palete no nosso céu?).

Desço ao serviço de urgência massacrando o pavimento com o plástico das socas que passei a calçar e cujo som marca o compasso da minha marcha. Passo pela sala dos médicos. Encimando a mesa grande que a ocupa estão múltiplos pacotes com o logótipo de um conhecido restaurante da capital. Num deles, talhado a caneta de feltro, está uma mensagem de encorajamento. Tem sido recorrente. Por todo o hospital. Não sabem o quanto nos ajudam. Não me permeabilizem os canais lacrimais.

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Cruzo-me, na viagem de regresso à ala a que pertenço, com uma senhora particularmente idosa, que caminha muito lentamente, curvada sobre si própria. Usa máscara. Uma FPP2 (perdoem-me o jargão) creme. É portadora de um saco de plástico, que carrega a custo. Chama-me com voz trémula à medida que me aproximo: “Doutor”. Estaco e indago: “Diga, minha senhora”. O rosto convulsiona-se num esgar, num complexo jogo de fibras de colagénio, que adivinho, através dos elásticos e do creme da máscara, compor um sorriso. Expõe, lenta e detalhadamente: “Vim à minha consulta, mas trouxe uns mimos que fiz ontem em casa, sabe como é a solidão, para os senhores doutores e para as senhoras enfermeiras que pudesse encontrar. Aceita um?”. Não me faça isto minha senhora que me embacia os óculos. Não me permeabilize os canais lacrimais.

Entre gasimetrias e auscultações vibra na sala, repetidamente, o meu telemóvel, também ele envolto num casulo de plástico. Aquando do meu retorno temporário deparo-me com várias mensagens e uma chamada de um amigo de sempre. Ligo, algumas horas mais tarde (nem sempre é fácil encontrar interstícios que permitam estas veleidades de responder a amigos), receando tratar-se de um assunto pouco agradável. Atende-me ao segundo toque, pergunta por mim e pelos meus e informa-me que apenas me contacta para, em linha com o que já me havia sido comunicado por um colega dele no dia anterior, me confirmar a intenção da empresa em que trabalha doar todo o equipamento (fatos, toucas, luvas, coberturas para sapatos) que possui em armazém ao hospital. Faço uma pausa e agradeço, uma, duas, três vezes. Comprometo-me a organizar a componente logística da operação. Repito, não me embacies os óculos. Não me permeabilizes os canais lacrimais.

Nos próximos dias cumprirei o sonho de uma vida e vestirei o fato de astronauta. Vou directamente, em excelente companhia, num supersónico foguetão para o olho do vórtice – a unidade de isolamento. Vão impermeabilizar-nos com capacete e fato brancos, óculos translúcidos, máscara mostarda e luvas azuis.

Há que impermeabilizar pórticos. Também.

Sento-me no carro com a Sofia. Explico-lhe o desafio que se segue. Conversamos sobre projectos futuros, encontros face a face nas próximas semanas, preocupações com os pais dela, preocupações com os meus pais. Está também preocupada comigo. Que pôr do sol esplêndido… Porque é que não aplaudimos Sofia? Desço parcialmente o vidro da janela. Corre uma aragem (diferente da brisa do início da semana) quente, típica de um Verão que também teima em não chegar (já vos disse que as ilusões sensoriais sempre me atraíram?), e que transporta um odor a pinheiro, que saboreio. Ouvem-se cucos (evocam sempre memórias felizes, dispersas por Alentejo e Algarve, por Primaveras e Verões passados) imediatamente acima de nós. Sempre fui um degustador de momentos. Coleciono-os, saboreio-os, fruo-os. No sistema de som ecoa a voz de Rui Veloso que informa que podes virar chorar no meu peito, longe de tudo o que é mau, que eu vou estar sempre ao teu lado, no meu cavalo de pau.

A caminho de casa dois agentes pedem-me que me identifique. Enquanto o faço perguntam-me de onde venho e qual a minha ocupação profissional. Mostro-lhes cédula profissional e cartão de funcionário do hospital. Batem continência e um deles diz: “Obrigado Doutor”. Não faça isso senhor Guarda que me embacia os óculos. Não me permeabilize mais os canais lacrimais (porque é que as secções dos meus textos são tão fluidas?).

Encontro os meus pais na sala. Entro de máscara e luvas postas e mantenho-me apenas na ombreira da porta. Exponho as alterações que ocorrerão no cumprimento do meu métier nos próximos tempos. Viveram para mim toda a sua vida. Para além de viver para eles, vivo para aqueles que de mim precisam. Concordam, e motivam-me. Não disfarçam preocupação e emoção. Sei que estão sempre comigo, mesmo quando não os posso ver proximamente, abraçar e beijar.

Ligo, como sempre, às minhas avós, que me cantam e contam histórias de outros tempos ao telefone. Está tudo óptimo, claro.

Mais do que tempo de lágrimas, é tempo de suor. Enquanto profissionais de saúde é esta a nossa missão, que aceitamos ao ser chamados e que cumpriremos com entusiasmo. É a bondade, a generosidade, e o carinho que por aí grassam que também exponenciam o entusiasmo e a abnegação com que nos dedicamos a uma tarefa complexa, mas gratificante.

Impermeabilizam-nos agora para que possamos permeabilizar depois.

Imbuído na Esperança que carrego no nome, e no verde da farda sigo com a certeza de que haverá certamente estrelas no céu a dourar o nosso caminho.