Nietzsche é mal entendido, havendo até quem não o considere filósofo. Mas vale a pena voltar à sua inconfessa grande intuição: a de um Cristianismo correspondente ao coração de todos os homens, farto de palavras ocas, valores, Declarações, Mensagens e Apelos à Paz. Um coração humano, tão humano que quer ser mesmo homem, mais homem…

De criança e de louco todos temos um pouco, e ele teve muito. Da loucura que herdou do pai, que sempre esteve presente e que no final de vida o apagou para a sanidade; da criança, a inocência dançarina, de uma alegria de viver que sempre desejou. Como poucos homens, soube descrever o que o coração humano realmente anseia: uma vida sem limites, um sim permanente de eterno retorno!

Ouvi há dias o Assim falava Zaratustra, de Richard Strauss, que me lembrou da mais valia do homem que amava a Música e se considerava um profeta, pleno de ideias que são, ainda no seu dizer, “dinamite”.

Cativa-me a sua resiliente e apaixonada luta pela verdade, motivada pela filosofia niilista de Schopenhauer, da qual, porém, se veio a libertar. Reler os inúmeros aforismos do pensador solitário e errante, nestes dias de guerras intermináveis e indefinição de valores e fronteiras, parece-me deveras oportuno.

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Para muitos foi alavanca de filosofias e análises, significando coisas diferentes a pessoas diferentes. Seja pelo seu criticismo da moralidade, seja pelo seu trabalho de fenomenologia dos valores. Mas principalmente ele está aqui presente pelo diagnóstico que faz da inqualificável decadência da Europa, ao ponto do crime da Morte de Deus. Deus está morto e fomos nós que O matamos, com as nossas mãos!

O que tem especial o homem que morre em 1900, no dobrar do século XX, a prefigurar uma nova Aurora?

Antes de mais, tem de especial o remeter para uma indagação pessoal, como o próprio refere no prefácio de Aurora (1881), livro composto por mais de 500 aforismos. Nietzsche confessa:  eu desci às profundezas; comecei a perfurar o fundo; empreendi algo que não poderia ser da conta de todos. E passa a batata quente, como experimentamos no impacto em nós do tom invetivo dos seus discursos, a apelar a uma constante auto-superação…

A sua especialidade não foi a de nos deixar um sistema de ideias mas a de militar, em primeira linha, a necessidade e ousadia de um pessoal e insubstituível inconformismo diante de uma falsa verdade, ou paz, ou vida, ou falsos valores…

Entre muitos que tentaram a fotografia do pensador alemão, destaco Kaufmann que vê Nietzsche como uma vontade de verdade e integralidade intelectual. Nem a influência de Schopenhauer, que Nietzsche aprecia até à exaustão, impede a visão que prefere a vida, e não a sua negação.

É o apreço à vida que senta Nietzsche no Banquete das grandes Filosofias. Importa por isso ver como é que o filósofo chegou à centralidade desse conceito, e daí avaliar como ele a entende, o que é dizer avaliar a natureza e o alcance da vida que queremos viver.

O apreço pela vida vem da recusa do idealismo hegeliano. Mas principalmente é o seu gosto pela Grécia que lhe dá a forma de ver a vida. Amante e profissional da cultura clássica, Nietzsche junta o que há de bom no espírito apolínio e no espírito dionisíaco, ou seja, ama a ordem e o desequilíbrio, que se casam na arte. A verdadeira cultura é a unidade das forças da vida (ou elemento dionisíaco) com o amor da forma e da beleza (elemento apolínio).

A chave para aceder ao pensamento de Nietzsche é então o estudo aturado de dois outlooks morais. São muitas as designações destas duas formas de moral – moral dos  senhores, moral dos escravos; moral dos fortes, moral dos fracos; moral grega, moral cristã; moral autêntica, moral inautêntica; moral aristocrata, moral de rebanho; moral do sim, moral de ressentimento; moral fechada, moral aberta, etc. – que pretendem designar duas formas de vida que podem ser encontradas no mesmo homem, uma vez que na vida, no seu entender, não há maniqueísmos.

A originalidade do pensamento de Nietzsche foi reconhecida por Max Scheler, herdeiro e companheiro de Husserl, que identificou o ressentimento como a categoria fundamental presente em Para Além do Bem e do Mal (1886) e em A Genealogia da Moral (1887). Nestes textos temos uma síntese da descrição de duas formas de moral, descrição que se foi esboçando desde os primeiros escritos.

A grande intuição que nos revela a obra nietzschiana  tem um nome: vida!  A vida não está em túmulos caiados de branco, túmulos esses que podem ser encontrados em qualquer forma de cultura, mas que Nietzsche vê no farisaísmo judaico, em oposição à moral grega.

A genealogia da moral judaico-cristão está num ódio aos valores da cultura heroica dos gregos, valores que se apreciam e desejam, mas que por impotência se renegam como desprezíveis, dando lugar a valores à medida dos fracos. Os músculos dos gregos dão lugar – sem que disso nos demos conta, porque o ressentimento é um fenómeno subterrâneo –   às mãos que rezam. Neste ponto Nietzsche abunda em exemplos contrastes das duas morais  – descritas  numa miríade e genial adjectivação –  impressionantes pela sua actualidade.

A tão conhecida fábula da raposa e das uvas, conta-nos a inversão de valores operada pelo ressentimento, nas suas várias etapas desde o “que belas uvas” ao “são verdes, não prestam!”.

O que o filósofo alemão nos dá do Cristianismo não é contudo o Cristianismo, como muitos erradamente pensam, mas sim vivências deformadas da religião cristã.  É que o Cristianismo enquanto tal não tem genealogia possível; é um Acontecimento único, irredutível a qualquer categoria.  Por isso escapa à dinamite de Nietzsche. As suas análises e descrições o que fazem, e bem, é explodir práticas pseudo-cristãs, que não dão a vida que tanta apregoam.

As descrições da vida subjacente à moral superior, são o grito por uma vida realmente viva, só plena no único Homem que ressuscitou dos mortos e disse ao que vinha e veio: “para que tenham vida e a tenham em abundância.”

Se bem que Nietzsche tenha sido claro em muitos aspectos, falhou em não ter dado suficiente atenção ao ponto  crucial:   se  a sua distinção entre dois tipos de moral não se baseia na pressuposição tácita da objectividade de valores que rejeitou. Seja como for o seu pensamento é dinamite necessária e urgente para explodir a Europa envelhecida numa moral de rebanho, que, à falta de Memória, não toma a vida em mãos e se entretém a contar espingardas, perdendo-se perdendo os seus. Uma Europa des-humana, que escandaliza!