O supostamente eterno cordão sanitário foi ignorado – pela primeira vez na história da Quinta República Francesa. Existe um acordo da Reunião Nacional (RN) de Bardella e Le Pen com Les Républicains (LR) comandados por Éric Ciotti. O que é que isto quer dizer? Vamos por partes.

Primeiro: não haverá candidato do RN face ao candidato LR. Consequentemente os LR muito provavelmente não apresentarão candidatos noutras circunscrições face aos candidatos RN. Os votos do primeiro turno, em vez de se dispersarem em duas listas, unir-se-ão numa. O segundo turno é disputado entre as duas listas mais votadas no primeiro; assim, o acordo RN-LR permitirá que os candidatos apoiados pela coligação – quer sejam de um partido ou do outro – possam aceder ao segundo turno.

Segundo: uma vez no segundo turno o RN sofria frequentemente de um défice de novos votantes, e os outros partidos uniam-se, votando no candidato face ao candidato RN, que normalmente era derrotado. Desta feita as coisas poderão ser bem diferentes, se os clássicos eleitores LR votarem no candidato RN, é muito provável que este vença a circunscrição.

Terceira: Marion Maréchal, sobrinha de Marine Le Pen e cabeça de lista de Reconquête – o partido de Éric Zemmour – para as recentes europeias parece ter encontrado um acordo com o partido da tia. A coligação irá para além de RN-LR, incluirá, muito provavelmente, candidatos de Reconquête, apesar do partido em si ser rejeitado. Possivelmente porque a coligação não se quer associar a Zemmour, concebido por muitos como demasiado radical. Na realidade é possível que seja a crua vingança de Marine Le Pen que para as eleições europeias de 2019 havia convidado Zemmour para se juntar à sua lista, tendo este, na altura sendo comentador televisivo, rejeitado o convite. A posterior criação do partido Reconquête foi vista por vários no RN como uma maneira de lhes roubar eleitores, e a relação entre os dois partidos sempre foi má.

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Confuso? Ainda há mais! Éric Ciotti foi, possivelmente, removido de LR pelos barões do partido. Ciotti, presidente da formação de centro-direita, disse que a sua remoção viola os estatutos do partido e a reunião realizada não tem qualquer valor jurídico ou legal. Entre a tentação macronista e a tentação lepenista, os LR podem estar a entrar num túnel cheio de sarilhos, de onde podem nunca mais sair.

E o fascismo, no meio desta enorme salganhada? Uma vitória desta coligação inédita trará tanto fascismo para França com o actual governo italiano trouxe para Itália, ou seja: nenhum. Parece-nos que esta coligação poderia ser o grupo com mais deputados depois das eleições, falta saber se a maioria será absoluta ou somente relativa.

Mesmo para os desinformados que pensam que Bardella representa alguma espécie de fascismo, tranquilizem-se: acima de Bardella permanecerá Macron. O presidente em França é muito mais do que uma figura simbólica; para lá da defesa e das relações internacionais ele permanece a figura central política da nação. Quanto à realidade interna podem existir algumas mudanças, o primeiro-ministro tem, teoricamente e constitucionalmente, a primazia interna. Mas se Bardella não optar por uma estratégia combativa, como por exemplo a da chaise vide – cadeira vazia – seguida pelo General Charles de Gaulle outrora, Bruxelas continuará a ditar as regras do jogo.

Caso o RN decida jugular a imigração e os direitos dos estrangeiros terá o Tribunal de Justiça da União Europeia à perna. Não faz muito sentido alongarmo-nos sobre isto, não metamos a carroça à frente dos bois. Só o Frexit – saída da França da UE, tal como ocorreu com a Grã-Bretanha – poderia efectivamente permitir uma mudança epocal. Mas depois das transformações que o RN sofreu esse tipo de radicalidades parecem já não estar na agenda.

À esquerda teremos uma grande coligação igualmente, uma espécie de NUPES 2.0 que atingiu um resultado bastante bom na última presidencial – note-se: presidencial, nesta legislativa será mais difícil. Esta união não deixa de criar problemas aos seus membros, sendo o PS e satélites pró-Israel e a França Insubmissa ferozmente pró-palestiniana.

E ao centro? Ao centro temos o feudo macronista, que vai minguando a olhos vistos. O actual presidente francês fez uma jogada de mestre ao convocar estas eleições legislativas. Que, segundo alguns constitucionalistas, terão de ser adiadas uma semana ou duas, pois a convocação foi demasiado rápida e não respeitou os intervalos constitucionais.

Emmanuel Macron quis esta derrota. Com ela teve a desculpa perfeita para dissolver o parlamento (a câmara baixa, não o Senado) e meter o RN à prova. O seu objectivo é simples: que a coligação de direita tenha uma maioria absoluta, que Bardella se torne primeiro-ministro. Mas porquê? Simples, para tirar a virgindade política ao RN. Com todos os problemas que surgem quando existe uma coabitação – nome que os franceses usam quando o presidente e o primeiro-ministro não são do mesmo campo político – o governo estará parcialmente amarrado. Se juntarmos a isto os ataques jurídicos e mediáticos que sofrerá a tarefa afigura-se difícil. Neste contexto, os resultados dificilmente serão satisfatórios.

Quando chegar a presidencial de 2027, o RN não poderá alegar que ainda não teve responsabilidades governativas e terá um passivo de cerca de 3 anos. É exactamente isto que Macron deseja, porque pensa que a política que Bardella meterá em obra será desapreciada pelos franceses. Assim, o centro francês espera garantir a reeleição de um dos seus na próxima presidencial, que é o que verdadeiramente conta.

Se Bardella se tornar primeiro-ministro não podemos excluir uma insurreição nacional em França. Este cenário não nos parece muito provável, mais também não é impossível. Se tal ocorrer poderíamos assistir à aplicação do artigo 36 da Constituição, declaração de estado de sítio.

Uma coisa é certa: o centro-direita em França corre graves riscos, a sua indefinição e a sua tentativa de agradar a gregos e a troianos são-lhe cada vez menos frutíferas. O deslizamento à direita de uma parte importante do eleitorado deixa antever um enquadramento político que se aproxima cada vez mais do italiano; onde o centro-direita participa no governo como sócio minoritário.

A probabilidade de vermos Bardella queimar a dívida pública francesa, declarar guerra ao Reino Unido e capitanear uma revolução socialista é baixíssima. A única coisa que aproxima Bardella de Mussolini é a sonoridade italiana do seu nome. Aí, também Ciotti não lhe fica atrás…