A relação dum cidadão com o seu governo é, frequentemente, uma relação de espera. Ele espera no hospital, espera na repartição, espera pelo reembolso, espera pelo tribunal, espera pelos resultados da governação – às vezes, espera simplesmente que o governo vá embora e venha um menos mau. Mas não é fácil lembrar-nos de outro como este, em que, basicamente, um cidadão já só espera que o governo saiba o que está a fazer. É um tipo de espera um pouco diferente; a primeira faz-se de braços cruzados, a segunda de mãos postas.

A aprovação do Orçamento do Estado, que parecia impossível há seis meses, quando o governo tomou posse e nem um Presidente da Assembleia da República conseguia fazer passar, tornara-se, entretanto, um passeio no parque. O Chega, que até gosta de caça e de fazer campanha ao som de escapes que o próprio líder confunde com tiros, espetou uma rajada deles nos pés quando, primeiro, exigiu como condição para negociar um referendo à imigração e, depois, já devidamente deixado a falar sozinho por todo o espectro político e mediático, amuou e retirou-se da negociação de forma “irrevogável”. E o PS, para quem ainda em Julho era “praticamente impossível” aprovar o Orçamento, e que agora já só pedia cedências e até anunciava quais: o fim do “IRS jovem” e da descida do IRC.

Ou seja, o primeiro-ministro, que começou a governação entalado entre PS e Chega, que, precisando sempre de um deles para aprovar o que quer que fosse, pagaria sempre o preço da chantagem do outro, ora acusado pelo PS de estar feito com a extrema-direita, ora acusado pelo Chega de ser igual aos socialistas, de repente, tinha algo com que não teria contado nos seus sonhos mais selvagens: caminho livre, dum lado e doutro. Bastava-lhe mostrar abertura e dialogar com o PS, a quem por sua vez importava apenas mostrar que vendera cara a derrota e levar para casa um ou dois troféus de caça. Com o Chega auto-excluído da equação e a mostrar ao seu eleitorado de que serviu votar neles, o cenário de novas legislativas ficava adiado para 2026 e podíamos, enfim, começar a pensar no que fazer com um horizonte mínimo de estabilidade. O que fazer de realmente transformador para o país, em vez de meros aumentos salariais para comprar alguma paz social.

Mas talvez alguém se tenha entusiasmado demais com as facilidades. No regresso pós-férias e ainda antes de o país ter sido bombardeado por uma sequência de acontecimentos dignos do Antigo Testamento – sismos, incêndios, fugas da prisão, assaltos a ministérios, quedas de helicópteros, ataques em escolas e outras pragas perdidas do Egipto –, o primeiro-ministro lembrou-se de esticar a corda: “Este governo não precisa de eleições para governar ou se relegitimar”, sentenciou em Castelo de Vide. Como quem diz: “Não precisamos de vocês para nada. Chumbem lá o Orçamento que nós governamos com o do ano passado.”

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Ora, sucede que, pelos vistos, tal como no Presidente da AR que esperaram aprovar porque o dia estava bom para isso ou a candidata a Belém lançada sem perguntar à própria se estaria para aí virada, também desta vez os responsáveis da AD parecem não ter achado pertinente sondar primeiro a opinião do Presidente da República. Que faria Marcelo em caso de chumbo do Orçamento? Dissolvia a Assembleia como fez no tempo de Costa? Ou, a coberto da necessidade de proteger o país de outra crise política, manteria o governo em funções, executando o Orçamento em duodécimos, até para não ficar na História, não como Presidente dos afectos, mas como recordista nacional das dissoluções?

Bom, coincidência das coincidências, segunda-feira Marcelo diz que, sem Orçamento, há crise política e, terça, Montenegro já anunciava que, afinal, não contavam com ele para governar em duodécimos. Entretanto, o domingo já tinha sido passado em comunicado para cá e comunicado para lá, a marcar reuniões com o PS. E um cidadão lá pensava que tinha sido escusado esta volta toda, mas que, bem bom, ao menos parecia que, lá para sexta, tínhamos o caso resolvido. Só que não.

Como até 10 de Outubro, ainda tínhamos quase três semanas para decidir o que fazer ao país, o governo lá se lembrou de convocar também, para reuniões “discretas”, a IL e o Chega: a IL que terá propostas muito interessantes, mas não conta para a aprovação do Orçamento, e o Chega, que se retirara da mesa negocial pelo próprio pé (o tal já com uns quantos tiros em cima), voltando a chamar a jogo André Ventura, que por vezes incontáveis já demonstrou ser um parceiro tão confiável como um escorpião com a tensão alta.

Para aprovar o Orçamento, o governo só precisava de ter feito uma coisa: negociar a descida do IRC com o PS (o IRS jovem é para deixar cair. Mesmo que, pessoalmente, vejamos méritos na ideia, é difícil encontrar uma proposta que desagrade, ao mesmo tempo, a PS, Bloco, IL e até ao FMI). Mas decidiu meter-se num caminho em que se obriga a mortais encarpados e flic-flacs à retaguarda.

E um cidadão, como sempre, à espera – do pior. Fica a proposta à atenção duma futura revisão Constitucional: não podemos pedir orçamentos a todos e logo escolhemos o que mais nos convém? Claro, já sabemos que vai sair, mas, ao menos, a obra avança.