A ética está subjacente as decisões humanas, sempre que impliquem opções sobre o caminho a seguir. Em última análise, a ética aponta-nos o caminho certo a seguir. Isto que parece muito claro, na realidade assenta em complexas redes de processos de tomadas de decisão, de interações e dialéticas, em que a derradeira palavra é enformada por um conjunto de princípios enumerados ao longo de séculos de crescimento e amadurecimento da civilização humana.

Fazer bem, enquanto medida de eficiência e eficácia, é importante, mas não basta. É preciso que ao fazer bem se associe o fazer eticamente o bem, sabendo escolher os meios legítimos necessários para alcançar os fins. É imperativo robustecer a responsabilidade ética no uso da técnica, evitar a confusão entre fins e meios e promover a permanente necessidade de uma orientada gestão de recursos finitos que erradique o desperdício, a futilidade e a redundância.
O desenvolvimento humano e social não se pode limitar ao crescimento económico e material, pois que sendo embora uma condição necessária, pode ser insuficiente para o desenvolvimento integral e pluridimensional de todos e de cada um.

O desenvolvimento é indissociável da ética, da sua apreciação moral e da responsabilidade pessoal e comunitária, de modo a garantir a sua sustentabilidade e a ser verdadeiramente libertador.

O juramento hipocrático, é parte de um conjunto de documentos em que pela primeira vez de procuram traçar linhas orientadoras para uma das atividades mais permanentemente confrontadas com opções éticas – a Medicina. O, princípios hipocráticos, foram na sua essência adotados sem mácula por todas as religiões monoteístas e mesmo por outras correntes de pensamento e opinião, como princípios fundadores do bom exercício da medicina.

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Vale a pena ter sempre presente o grande princípio hipocrático “Primum non nocere, secundum cavere, tertium sanare”: em primeiro lugar não fazer mal, em segundo prevenir e em terceiro curar.

O primado de não fazer mal, sobrepondo-se a todo e qualquer outro princípio, vem de imediato seguido pelo de fazer bem e fazê-lo sem qualquer discriminação, com justiça e equidade. Os princípios que vigoraram por mais de 25 séculos não são hoje suficientes para dar resposta a questões emergentes como as suscitadas pelos enormes progressos da ciência e técnicas médicas, nem ao desenvolvimento e emancipação da própria sociedade, cada vez mais informada e consciente do papel que cada um pode e deve ter no processo de decisão médica que afeta a sua própria saúde. Tradicionalmente era o médico que tinha a exclusiva responsabilidade pela tomada de decisão, numa atitude em geral bondosa e bem-intencionada, mas fundada no chamado “paternalismo médico” em que o médico era o detentor de melhor ou única verdade para assegurar o bem do seu doente. Essa atitude não é mais compatível com a crescente consciência da autonomia quem conjuntamente com o respeito pela dignidade, liberdade integridade de toda a Pessoa humana passa a integrar os pilares fundacionais de uma nova ética médica inserida na bioética global, ao serviço da dignidade, do bem, da própria vida humana. Esta reflexão, na linha de um grande pensador sobre esta temática, Walter Oswald, é bem espelhada na afirmação de Maria do Céu Patrão Lopes, que escreveu em 2016: “A integração efetiva do princípio da autonomia na prática médica valoriza o papel da pessoa doente como parceira de um projeto terapêutico dialogado  e elimina a potencial violência de um paternalismo hegemónico, sem todavia permitir a conversão da prática médica numa comum atividade social contratualizável e a redução do clínico a um simples funcionário ao serviço das solicitações de um cliente”.

Existem velhos e novos perigos no horizonte. A iliteracia médica é um fator limitador do estabelecimento do diálogo, mas há uma nova forma de iliteracia, a que chamaria sobre informação, habitual nos frequentadores do Google ou outras plataformas informáticas. Trata-se de pessoas muitas vezes ansiosas, que nuns casos procuram excessivamente o médico, outras vezes manifestam desconfiança em relação aos profissionais e sistemas de saúde. Essa sobre-informação não filtrada, é geralmente ignorante porque desenquadrada, não relativizada e sem as bases necessárias à sua adequada compreensão. Além disso, a argumentação é muitas vezes apresentada com arrogância, em tom de disputa, confundindo o direito do doente em ser informado e em ser parceiro (o mais interessado) nas decisões que lhe dizem respeito com a presunção de a interlocução se situar num idêntico plano científico e lhe outorgar por consequência total autonomia na fundamentação das decisões. É inerente à atitude científica a humildade de reconhecer que não se sabe tudo. Aliás, essa humildade associada à inquietação e à vontade de ir mais longe, são verdadeiramente o motor da investigação em ciência. No entanto, na interação com o doente, o médico é o detentor de saberes que usa em favor do doente, propondo caminhos de diagnóstico e terapêuticas, procurando colocar as alternativas com rigor, isenção e empatia.  Assim, a relação médico-doente é hoje mais desafiante porque implica esclarecimento adequado, compreensível e suficientemente profundo das opções e o estabelecimento de um verdadeiro acordo, essencialmente fundado numa relação não de dependência, mas de parceria e confiança.

A ausência de universalidade na prestação de cuidados é, infelizmente uma terrível realidade não só nas gritantes desigualdades planetárias, mas mesmo dentro de cada país e cada sistema. Por grande que tenha o progresso nos últimos cem anos, muito e muito há ainda que fazer para garantir essa universalidade de cuidados. Mais exigente ainda é a garantia da equidade, tratando como diferente o que é diferente, de forma a proporcionar a todos o melhor, mas dentro de uma hierarquização de prioridades eu assegure justiça. De facto, universalidade não é sinónimo de equidade e cimo exemplo, aa vacinação em massa de uma população nestes tempos pandémicos, seria profundamente anti-ética se não tivesse ordenado os pacientes por ordem decrescente do seu risco, assegurando assim a equidade do processo.

Outras ameaças com implicações éticas são a futilidade e redundância.  De facto, sobretudo em sociedades de abundância, debatemo-nos com os problemas decorrentes de algum excesso de oferta, de consumismo médico e de alguma medicina defensiva, que leva a realizar inúmeros atos de diagnóstico e mesmo de terapêutica sem qualquer impacto real na vida ou na sobrevivência das pessoas e inúmeras vezes repetindo informação já conhecida, sem qualquer efeito prático. Também neste campo, num contexto de recursos limitados que devem merecer uma gestão apropriada equitativa, os desafios éticos são especialmente presentes.

A medicina do futuro coloca-nos novos e difíceis desafios. Perante os desenvolvimentos diários da ciência e da tecnologia, o que era há pouco tempo impensável é hoje possível e muito do que ainda hoje não conseguimos, será uma realidade amanhã. Alguma fronteiras antes naturalmente não ultrapassadas por insuficiência de meios apenas poderão ser fronteiras por decisão humana. O que é possível é necessariamente legítimo? O que é realizável é apropriado? A aplicação de novas tecnologias sem universalidade e equidade serve o bem comum? E quem decide e como decide? Os políticos ataviados a formulários ideológicos ou a reboque das sondagens de opinião? O relativismo puro assente no menor mal entre males? E quem controla os processos? Quem encerra a caixa de pandora uma vez aberta? Quem interrompe a rampa deslizante de processos uma vez iniciados? Há hoje no mundo capacidade técnica para o destruir com as potentes bombas nucleares, mas nem haver essa capacidade alguém ousa usá-la. Por tudo isto os princípios fundacionais da ética médica têm que merecer a defesa intransigente por parte dos próprios profissionais de saúde e o entendimento dos novos desafios tem que estar presente no pensamento de todos.

Entre eles, cito os seguintes:

  1. A incessante procura da verdade científica. Existem, evidentemente, limitações das metodologias a científicas e as mesmas devem ser claramente assumidas . Todo o comportamento científico tem que assentar em sólidos padrões de integridade moral e ao lomgo dos anos, muitos desvios têm sido identificados.
    1. A enfatização excessiva das publicações em candidaturas a bolsa é uma prática relativamente comum
    2. A deteção de casos de manipulação de dados tem levado à retirada de artigos publicados. Existem diversos exemplo, alguns bem recentes.
    3. A análise dos dados. É célebre a frase do prémio Nobel da Economia, Ronald Coase: “Se torturares os dados por tempo suficiente, eles confessarão qualquer coisa”. A análise dos dados não pode desviar-se de uma linha de razoabilidade
    4. Interpretação dos dados e a apresentação de resultados. É clássica a ênfase nos dados de comparação relativa mesmo que com reduzido impacto nos dados absolutos. Isto faz muitas vezes parte de estratégia de vendas, confundindo o valor real de determinado resultado.
    5. O plágio é uma prática de desonestidade intelectual, dificultada pelas modernas ferramentas informáticas, mas ainda existente
    6. O conflito de interesses, entendido como retirar vantagens pessoais de tipo económico, social ou outro, é uma ameaça real à independência científica.
      1. Uma entidade com fins lucrativos pode ser associada, financiadora ou parceira de um projecto, mas não pode ter um papel condicionador ou tutelar
      2. O estado não é sinónimo de isenção
  1. A informação derivada da análise de “big data”, não pode ser usada como sinónimo de verdade inquestionável a aplicar em todas as circunstâncias. Os cuidados médicos têm que continuar a ser centrados na Pessoa humana, na sua individualidade, irrepetibilidade e dignidade. As informações da epidemiologia e da genética não podem constituir novos determinismos esmagadores da liberdade da pessoa, mas ser apenas ferramentas de apoio às decisões, não impondo as próprias decisões ou caminhos a seguir. É muito perigosa a apropriação dessas informações por entidades publicas e privadas que qual “big brother” possam de alguma maneira contribuir para novas formas de escravização. “Big data” vai gerar “bigger data” e os médicos não poderão mais ignorar essa informação. Os médicos têm que fazer o caminho da aprendizagem de como usar os dados de forma eficiente mas conseguirem decidir que dados devem ser partilhados com os doentes e usados para decisões e que dados devem manter-se reservados-
  2. A salvaguarda da privacidade tem que se sobrepor à disponibilidade de dados clínicos e pessoais armazenados em bases e cujo acesso pode ter inquestionável utilidade. A quebra deste princípio deve ser a exceção das exceções, regulamentada e monitorizada de perto. É especialmente desafiante a defesa da privacidade e da intimidade quando está em causa o risco de danos a terceiros e esse tema tem sido repetidamente abordado em caso de doenças transmissíveis.
  3. A medicina de precisão usa informação genética e molecular para criar doses mais exactas e fármacos mais precisos e com menor toxicidade. Isto é, em si, um bem. No entanto, a
  4. Costumised medicine quer mapeando com rigor o risco individual quer corrigindo genes, quer fabricando membros ou órgãos, comporta custos que tornam absolutamente impossível a sua aplicada de forma generalizada. Como escolher com equidade os candidatos?
  5. A modificação genética, com enormes avanços técnicos recentes como o genome editing pode trazer saúde felicidade corrigindo doenças hereditárias mas tem o potencial para criar “”designer babies” com atributos pré-determinados específicos ou abrir mesmo a porta a criar monstruosidades, dependendo do seu uso. A edição de novos Frankeinsteins não é hoje apenas um produto da imaginação e de fantasia
  6. A sustentabilidade dos sistemas de saúde é um desafio ético para gestores e administradores, mas igualmente para todos os agentes de saúde. Os recursos são finitos e têm que ser administrados com justiça. A inovação é desejável, mas também ela tem que ser harmonizada. O valor acrescentado real de novas tecnologias tem que ser ponderado profundamente, com isenção e imparcialidade. O papel e aconselhamento às autoridades que as sociedades Científicas podem ter, assume aqui particular relevância
  7. A utilização da robótica e da inteligência artificial está em desenvolvimento crescente mas uma vez mais tem que estar sob o controlo diligente de mãos humanas comandadas por cabeças de profunda formação ética.
  8. Vivemos presentemente uma tragédia planetária associada á pandemia COVID-19. Em diversas ocasiões e em muitos de países, os sistemas de saúde colapsaram; os recursos não chegaram para todos. Critérios ad-hoc foram adotados por médicos para tomarem decisões sobre a quem davam ou não a possibilidade de sobreviver. A idade foi talvez o critério mais usado. Mas porque é que uma vida de 70 anos tem menos valor que uma de 50? Pela probabilidade estatística da longevidade da sobrevivência? E o valor intrínseco dessa vida, a riqueza pessoal desse ser humano, as suas expectativas os seus afetos, os seus sonhos? Todas as vidas têm valor igual e só critérios clínicos de potencial futilidade de medidas agressivas uma vez ultrapassada a fronteira do ainda potencial para recuperação podem ser usados. No entanto, a gestão antecipada das catástrofes é possível e uma vez mais a maioria dos estados falharam no seu dever de proteger os cidadãos. Outras catástrofes se seguirão, a sua gestão deve ser antecipada e esse é um dever imediato.

Enquanto isso, continuaremos a ser médicos centrados na Pessoa com o seu universo de valores e de esperanças, na sua individualidade e dignidade. Nunca o esquecer tem implicações incontornáveis na forma como tomamos decisões e é sempre a ética médica que dever orientar as nossas escolhas