Fartos da política. Fartos de lutar por dinheiro que nunca chega. Que nunca é nosso. Fartos de contemporizar. De lutar com denodo pela vontade de ter razão. Fartos do céu azul e do tempo chuvoso. Fartos da esquizofrenia do politicamente correcto, da vacuidade pomposa e cheia das redes sociais. Farto do Grexit, do Brexit, do Scotexit. Do exit, simplesmente. Fartos de nós e dos outros, o inferno segundo Sartre (que já morreu). Fartos de hoje. Do amanhã que tarda.
Vivemos uma quotidiana esquizofrenia. Mas é só agora? Contemplo o meu desbotado eu, surpreendo-me com as manchas deixadas pelo tempo, ensimesmo-me como um mimo incapaz de se explicar o que quer que seja. Nem sequer por gestos, supremo mester do mimo.
O Homem moderno vive a angústia de se sentir Outro. Em seu redor tudo se explica e tudo fica por perceber, até o horror máximo – uns lacraus negros a cortar aos poucos a garganta de seres cor de laranja – se dissolve na enorme mancha mediática de indiferença. Mas esse horror, ou aquele de milhares de corpos negros afogados no Mar à nossa porta como formigas que uma criança dilui num copo de água, é um espasmo diário, uma mera inquietação.
Mais logo virá a notícia fresca, e outra e outra ainda, a chegar com tal rapidez que nada assimilamos, tudo passa e se esquece à mesma velocidade. No mundo virtual somos réus, acusadores e carrascos. A estupidez senta-se na primeira fila. Mas é só agora? Somos como somos há milénios. Darwin, com lógica bondosa, diria tratar-se simplesmente da selecção natural. Contra a bondade da lógica, concluir apenas que a estupidez é mais forte.
E se não é só agora, só agora as condições convergiram. Nunca pensámos que viesse a ser possível. Quando o homem dominasse a máquina e a pusesse ao seu serviço, maravilhavam-se de um equivocado antemão os sábios de outrora, chegaria o tempo sem violência, sem sangue vertido em vão. Comunidades alargadas partilhariam valores: na Europa, umbigo sangrento do Mundo, unida num largo espaço de solidariedade, seres livres trocariam produtos, utilizariam a mesma moeda, sem egoísmos nacionais ou nacionalismos tacanhos onde a guerra germina.
Mas não tem de ser assim. Num futuro passado agitam-se fantasmas. Os laboriosamente construídos Estados nacionais vacilam; um país quer sair da comunidade alargada de vontades a que se comprometeu e arrisca fragmentar-se no processo (falo do Reino Unido, claro, antes que me acusem de obscuro); um palavrão – grexit – comanda as pesquisas no Google; e já não há países, só interesses, não há valores, só ideologias, não há partidos, só grupos de pressão e associações secretas. Há ânsia de lucro e vontade de protagonismo. E cada vez menos solidariedade. Somos prisioneiros de maravilhosos Mundos virtuais, sentimo-nos sós no meio de multidões, somos nós em si mesmo, ensimesmadamente. Lentamente nos consumimos.
As ameaças à independência ou à liberdade não brotam da seiva vertida pelo Mundo vegetal ou dos ditames gravitacionais da “lua negra” de Natália Correia, mas das tensões ancestrais entre os povos, da construção artificial dos Estados modernos, dos sentimentos antagónicos e (necessariamente) agónicos de tantos “ocidentais” estilhaçados nos seus sentimentos de pertença, lealdade, de sujeição a um país, um Estado, a uma região. Somos plurais, queiramos ou não, sujeitos de muitas fidelidades, objecto de muitas persuasões. Somos Outros em Nós.
Portugal e os portugueses, nesta caminhada, estão entre os primeiros na maniqueísta dilaceração identitária: simultaneamente múltiplos e únicos: somos o povo germinal, o da profunda raiz do ser europeu: somos em simultâneo sujeitos de e a poderes seculares recentes, os Estados-nação detentores da soberania formal: dividimo-nos entre a nossa contemporânea condição, via redes sociais, Internet ou Skype, os direitos da cidadania e os múltiplos laços com que nos prendem afectos, deveres, sentimentos e complexos múltiplos.
Somos um povo grande esmagado pelo complexo da pequenez.
Carregamos memórias de sucessos, falhanços, progresso e retrocesso em doses iguais, numa alucinante sucessão. Será Portugal, já (ou de novo) uma pessoa civilizada, para usar a imagem inventada por Negreiros? Quem é Portugal senão eu e os outros, afinal Nós comigo? E eu sou em simultâneo eu próprio, membro da minha família e do meu concreto grupo de amigos; eu, cada vez mais amigo dos amigos do Facebook, que “laikam” de mim aos molhes; eu, português de Portugal – não apreciando o Estado a que chegámos -, alfacinha de Lisboa, cidade com jóias; eu, da língua portuguesa, a minha pátria falada; eu, cidadão de uma Europa em que circulo livremente e cujos representantes elejo.
Eu, cidadão, eu com os meus e os Outros em mim. Somos neles o que eles de Nós fazem.
Para enquadrar esta escrita torturada – peço perdão aos leitores por uma crónica desalinhada complexa (confusa, se quiserem ser menos benevolentes) -, proponho a seguinte reflexão:
Historicamente, escreveu Adriano Moreira, um homem da Idade Média era primeiro cristão, depois da Borgonha, e só então francês. Civilizacionalmente, quem viva sob um jugo não é livre de viver as suas fidelidades como escolher; evoca-se o Estado Islâmico e está tudo dito (podia-se invocar a Inquisição). Económica e politicamente, as condições de vida em centenas de países impedem milhões de humanos de construir, organizar e fruir as suas distintas fidelidades e afetos, constrangidos pelos ditames da sobrevivência.
Poucos povos experienciaram como os portugueses a diversidade das múltiplas condições identitárias: a saga da Navegação, Descoberta e Conquista, mas também o sofrimento, a capacidade de nos reerguermos, encolhidos neste cabo da Europa, a resistir, a perseverar. Somos, queiramos ou não, avatares serôdios de um Mundo em extinção, o das sociedades Ocidentais triunfantes. O maior paradoxo: quando os valores que cultivámos e lançámos aos ventos medram por todas as geografias e derrubam fronteiras, nós tendemos a cessar.
Há um Fim escrito na História do Ocidente.
Estiolam as identidades nacionais, substituídas por movimentos centrífugos baseados no medo e no ressentimento, sofre e vacila a nova ordem da integração de povos, somem-se os antigos e difíceis equilíbrios constitucionais. Quando medimos o nosso sucesso pelo número de “gostos” no Facebook, o que sobra da independência individual (a resposta pode ser… que pergunta tão estúpida)?
“Je est un autre”, escreveu Rimbaud. E é por isso que temos de recuperar a identidade que entregámos ao coletivo acéfalo de um espaço público omnipresente e a capacidade de aceitarmos os Outros em Nós sem deixarmos de ser Nós. Só assim negaremos a violência da perda de identidade a que nos condena um mundo virtual (binário) em velocidade acelerada, resistindo a entrar imóveis e em silêncio na obscuridade do nosso crepúsculo.
Talvez, na sua intrincada complexidade, o tenha explicado uma amiga no calor de uma conversa já cansada: “o nosso povo não sou eu”. Ainda hoje não percebi o que quis dizer.
CONTEMPORÂNEO

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