Quando Thomas Matthew Crooks tentou assassinar Donald Trump há apenas 13 dias, na Pensilvânia, muitos me perguntaram se o atentado teria tornado certa a eleição de Donald Trump como 47º Presidente dos EUA. Respondi que faltavam mais de 16 semanas até ao dia das eleições. Para além disso, se os últimos anos nos mostram alguma coisa, é que coisas inesperadas e sem precedente podem acontecer na cena política americana a um ritmo estonteante. Hoje, a mais de 100 dias da eleição, não sabemos quais os eventos extraordinários que podem ainda acontecer e que oscilações podem as sondagens mostrar até ao dia que realmente conta. A corrida não está ganha para nenhum dos lados.

Parecia não estar errada. Em menos de duas semanas, a campanha e a própria eleição norte-americanas mudaram radicalmente. Num período de 10 dias, assistimos a uma tentativa de assassinato do candidato republicano, seguida de uma iconografia simbólica marcante (a famosa fotografia) e uma escolha arriscada de candidato a vice-presidente, durante uma convenção Republicana que mostrou união e entusiasmo. Mas, sete dias depois do atentado, Joe Biden cedeu às pressões dentro do seu próprio partido e anunciou a sua retirada da corrida à Casa Branca, apoiando Kamala Harris como sua substituta. Desde 1968, quando Lyndon Johnson decidiu não se recandidatar num país a ferro e fogo (literalmente), todos os presidentes em funções, podendo disputar eleições para um segundo mandato, escolheram fazê-lo. Essa era a intenção de Biden, mas o seu desempenho desastroso no debate aprofundou receios de que a sua idade e acuidade física e mental não permitissem que o actual presidente pudesse ganhar uma eleição com uma campanha tão exigente e muito menos desempenhar outro mandato até aos 86 anos.

A escolha de JD Vance para candidato vice-presidencial, anunciada a 15 de Julho, antes da desistência de Biden, foi uma escolha interessante e arriscada, porque foi uma escolha de quem acha que já ganhou. Em geral, os vice-presidentes são escolhidos para “equilibrar” o ticket eleitoral, tentando colmatar falhas do candidato a presidente e apelar a grupos do eleitorado que ainda não estejam totalmente convencidos. Foi isso que Barack Obama, então um senador negro inexperiente, fez ao escolher Joe Biden. Biden era tudo o que Obama não era e representava uma facção diferente do partido democrata. Era um veterano de Washington DC com décadas de experiência legislativa no Congresso, era um filho da classe média e trabalhadora branca do Midwest, era branco e era mais centrista. Ao escolhê-lo, Obama queria convencer os grupos sociais e demográficos essenciais à coligação eleitoral do partido Democrata. De forma quase simétrica, são os mesmos motivos que levaram Joe Biden a escolher Kamala Harris em 2020. O Partido Democrata sempre foi mais uma coligação de grupos demográficos do que uma coligação ideológica coerente.

O próprio Donald Trump fez, em 2016, uma escolha totalmente diferente da que fez há uma semana. Ao escolher Mike Pence, um governador conservador da ala mais religiosa e tradicional do partido, com valores cristãos e de família, Trump quis dar garantias aos eleitorado cristão e evangélico que, apesar da sua vida privada devassa e de não vir da chamada religious right, iria sempre proteger os seus interesses na Casa Branca. Foi isso que fez com as suas três nomeações para o Supreme Court, que acabaram por resultar na reversão da famosa decisão sobre o aborto. Foi uma escolha bem-sucedida do ponto de vista eleitoral, na medida em que Trump conseguiu atrair o voto em massa do eleitorado cristão evangélico em 2016 e 2020.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas Donald Trump não fez isso com JD Vance. JD Vance não equilibra o ticket presidencial, atraindo faixas do eleitorado diferentes. JD Vance não convence eleitores diferentes dos eleitores que Donald Trump já consegue convencer. JD Vance é, na verdade, uma versão mais jovem de Trump, sem pensamento ideológico substancialmente diferente. Inclusivamente, foi apelado de “sucessor” de Donald Trump.

Alguns argumentaram que Vance conseguia apelar à classe branca trabalhadora e rural de forma (ainda) mais avalassadora que Trump. Mas não é isso que mostram os dados. Em 2022, quando concorreu pelo Senado pelo estado do Ohio, um dos estados mais republicanos do Midwest, JD Vance venceu, mas venceu com números bastante mais fracos que todos os outros republicanos comparáveis. O governador Mike DeWine concorreu na mesma eleição (o boletim de voto é único) e teve 62% dos votos. Vance teve apenas 53%, uma percentagem substancialmente inferior também à que o seu antecessor, o senador republicano Rob Portmann, havia conseguido na sua primeira eleição em 2010 (56%) e em 2016 (58%). Vance não mobilizou nem entusiasmou. Não sou eu que o digo, foi a própria revista conservadora National Review que o afirmou no rescaldo da eleição.

Porque é que Vance não entusiasmou e teve um desempenho aquém do esperado? Por duas razões. Primeiro, porque não pareceu conseguir, de forma credível, continuar a dizer ser um membro da white working class, depois de ter deixado o Ohio suburbano para passar pelos Marines, pela elitista Yale Law School, e pelos hedge funds bilionários da Califórnia e da Costa Leste. A sua mulher, também ela de meio privilegiado (filha de imigrantes académicos residentes na Califórnia), também estudou em Yale e em Cambridge e estagiou para o presidente do Supreme Court. Vance tem como principais apoiantes dois bilionários (Peter Thiel e Elon Musk). Com um perfil tão elitista, é difícil continuar a dizer-se do povo.

Em segundo lugar, Vance ficou aquém porque, ao contrário do discurso mediático, ainda há muitos eleitores centristas e independentes nos EUA (cerca de um terço do eleitorado). E não é possível ganhar eleições federais ou nacionais sem os convencer. Vance não é particularmente carismático e tem um estilo descarado. Desde que percebeu que ser um Republicano anti-Trump não satisfazia a sua ambição política, decidiu adoptar toda a cartilha ideológica de Trump, seguindo à risca mesmo as suas facetas mais radicais. Após a eleição de 2020, e sem qualquer evidência factual ou judicial, afirmou várias vezes que a eleição presidencial havia sido fraudulenta e era ilegítima. O eleitorado moderado não gosta deste tipo de afirmações e teorias radicais. Apesar da polarização ideológica entre Democratas e Republicanos, no meio ainda reside um terço do eleitorado que não se revê em nenhum dos partidos e que tem opiniões políticas moderadas. Este eleitorado é absolutamente determinante para ganhar eleições: investigação recente muito rigorosa já demonstrou que estes são os eleitores mais flexíveis, que se movem entre partidos, e que são fundamentais para ganhar eleições. Ou seja, paradoxalmente, num ambiente mediático e partidário polarizado e onde os candidatos estão mais polarizados, o eleitor moderado e centrista é mais importante do que nunca.

Ao invés de Vance, Trump poderia ter seleccionado um governador republicano mais “clássico”, como Glenn Youngkin, um homem de negócios que venceu em 2021 numa eleição disputada e difícil na Viriginia (um estado que Biden ganhara por +10 pontos percentuais apenas um ano antes). Youngkin apelou ao eleitorado de classe média e média-alta, centrista ou independente. E ganhou. É este o eleitorado que Trump tem de convencer para ganhar as eleições em Novembro. A sua base eleitoral já está motivada e entusiasmada. Rupert Murdoch também não concordou com a escolha de JD Vance. O seu candidato preferencial era o governador do Dakota do Norte, Doug Burgum, outro homem de negócios que, como Youngkin, poderia apelar a um eleitorado suburbano de classe média, centrista ou independente, que não gosta do estilo mais radical de Trump. Trump poderia ter escolhido Nikki Haley, uma mulher conservadora com um estilo bem mais moderado do que ele e que apela a um eleitorado diferente.

Veremos se esta escolha de VP não acaba a custar muito caro a Donald Trump. A verdade é que, quando escolheu JD Vance, Trump concorria contra Biden e tudo parecia indicar que venceria facilmente as eleições de Novembro. A vitória estava garantida, importava escolher um sucessor e entusiasmar as bases.

No entanto, agora, a eleição é outra. Com a desistência de Biden, Harris é a candidata do partido Democrata. A idade do candidato, que era o principal defeito eleitoral de Biden, já não é um assunto (a sê-lo, é um assunto para o próprio Trump). Harris é 20 anos mais nova do que Biden (e do que Trump) e representa uma mudança geracional. Por outro lado, Harris é mulher e não é branca. Infelizmente, vivemos num mundo onde isso ainda interessa e altera a eleição. Como mulher, Harris fará dos direitos reprodutivos e do cuidado pré-escolar bandeiras da sua campanha e será bem mais credível nessa mensagem que Biden. A sua cor da pele tem trazido ao de cima os piores substratos raciais da política norte-americana.

Naturalmente, Harris tem também muitos defeitos eleitorais, Não é claro aquilo que representa: em que é que acredita? Quais as políticas públicas que representa? Proveniente da Califórnia, nunca ganhou uma eleição fora desse Estado não-representativo e muito mais progressista do que o resto do país. Em 2020, quando tentou pela primeira vez concorrer à presidência, foi uma das maiores desilusões e uma das primeiras a cair na primária, por parecer não entusiasmar ninguém. A Kamala que vimos em Milwaukee esta semana pareceu diferente, depois de três anos a treinar oratória e a rodar o país como Vice-Presidente. No entanto, ainda não sabemos qual o seu valor eleitoral. A desvantagem em relação a Trump nas sondagens, nos sete principais swing states, herdada de Biden, poderá ser difícil de ultrapassar, apesar de parecer ter diminuído ligeiramente nos últimos dias. Também não sabemos se Kamala, a Californiana liberal e mulher de cor, conseguirá ganhar os famosos estados do Midwest, que Biden recuperou e Trump conquistou em 2016. Não será tarefa fácil e o resultado final dependerá da sua capacidade de mobilizar o eleitorado afro-americano desses estados (que Clinton não conseguiu) e de convencer pelo menos uma fatia da classe média e classe trabalhadora branca desses estados.

Em suma, a eleição presidencial de Novembro voltou a ficar totalmente em aberto. Quem disser ao leitor o contrário, cheio de certezas, estará enganado ou a mentir.