Numa ordem mundial que deixou de ser bipolar, o duelo entre os Estados-Unidos e a China, que tem vindo a ganhar espaço e importância, promete condicionar a geopolítica internacional na próxima década. E o duelo não se esgota naquilo a que Graham T. Allison chamou a “armadilha de Tucídides”, referindo-se à ameaça à hegemonia de Esparta que a ascensão de Atenas representou, empurrando os prudentes espartanos para guerra. É uma rivalidade económica e uma oposição de modelos político-sociais que geram a desconfiança e o temor cruzados, com pontos quentes territoriais que podem funcionar como rastilho.
E este profundo antagonismo comercial e político, este quase choque de civilizações, não dá mostras de ter sofrido alterações com a mudança de estilo na Casa Branca, mantendo-se praticamente inalterado quando o republicano ferrabrás Donald Trump deu lugar ao democrático e simpático ancião Joe Biden.
Encontro no Alasca
O recente encontro entre os responsáveis máximos pela política externa de Washington e de Pequim, em Anchorage, no Alasca, mostra-o bem. O encontro juntou, no Hotel Captain Cook, o Secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, o Conselheiro Nacional de Segurança, Jake Sullivan, o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, e o Director da Comissão Central para os Negócios Estrangeiros do Partido Comunista da China, Yang Jiechi, que foi embaixador nos Estados Unidos entre 2001 e 2005 e depois Ministro dos Negócios Estrangeiros de Pequim, entre 2007 e 2013.
De acordo com o relato oficial do State Department, Blinken começou por falar nos encontros que acabara de ter na Coreia do Sul e no Japão e das “profundas preocupações” que ali tinha partilhado com coreanos e japoneses. E “as profundas preocupações” então discutidas com os dois aliados – “dois dos nossos mais próximos aliados” – incidiam sobre “as acções da China no Sinkiang, em Hong Kong e em Taiwan”, os “ciberataques contra os Estados-Unidos” e a “coerção económica” da China aos “nossos aliados”. Acções que não eram “meros assuntos internos” já que ameaçavam a ordem internacional e as suas regras elementares.
E concluía: “The United States relationship with China will be competitive when it should be, collaborative when it can be, adversarial where it must be”. Curiosamente, este “competição quando devida, colaboração quando possível, hostilidade quando necessária” aproxima Blinken do “Contenção, Détente e Roll Back”, a estratégia para combater a União Soviética na Guerra Fria, inspirada no “long telegram” de 1946, de George F. Kennan, então número dois da embaixada americana de Moscovo.
Entretanto, no Alasca, toma a palavra o Conselheiro Nacional de Segurança, Sullivan, para continuar ao ataque, referindo a cimeira virtual de Biden com os líderes do chamado grupo “Quad” – Índia, Japão, Austrália –, na sexta-feira, 12 de Março; um “encontro histórico” de uma aliança mais ou menos adormecida, que nunca tinha reunido a tão alto nível e que era claramente uma “aliança de democracias” para conter a China. E sublinhou que a prioridade dos Estados-Unidos era o bem dos Estados-Unidos e a protecção dos interesses dos seus parceiros e aliados.
Em resposta, o Conselheiro Yechi contra-atacou com o longo prazo, dizendo que a China esperava, em 2035, acabar a sua etapa de “modernização básica” e terminar, em 2050, “a modernização total”. Falou depois dos sucessos da China no combate à Covid 19 e à pobreza – apesar de o PNB per capita da China ser 1/5 do dos Estados-Unidos. E passou à unidade da China, sublinhando que “o povo chinês” estava “todo à volta do Partido Comunista Chinês” e que os seus valores eram “os valores comuns da Humanidade”, a saber, “a paz, o desenvolvimento, a decência, a justiça, a liberdade e a democracia”.
E da unidade da China e dos seus valores democráticos seguiu para as divisões e fragilidades da arrogante democracia americana: era importante que os Estados-Unidos “mudassem a sua imagem” e parassem “de promover a sua própria democracia no resto do mundo”, até porque “muita gente nos Estados-Unidos” tinha “pouca confiança na democracia norte-americana”, enquanto na China, “de acordo com os inquéritos de opinião”, os líderes chineses tinham “o largo apoio do povo chinês”.
E voltou à Guerra Fria: os Estados-Unidos tinham de abandonar “a mentalidade de Guerra Fria”; de resto, um dos problemas pendentes no mundo resultava da hipervalorização, pelos Estados-Unidos, da segurança nacional “através da força e da hegemonia financeira” e “levantando obstáculos às actividades comerciais”; enquanto a China actuava com isenção ideológica nas relações ligadas à importação e exportação, isto é, “de acordo com os padrões científicos e tecnológicos.”
E antes de passar aos pontos mais quentes, referiu a conversa telefónica dos presidentes Xi Jinping e Joe Biden, na véspera do Ano Lunar chinês, conversa que estava na base daquele encontro em Anchorage, de que todos esperavam resultados práticos.
Vinha agora a resposta às “profundas preocupações” americanas. O Sinkiang, o Tibete e Taiwan eram “parte inalienável do território da China” e a China opunha-se firmemente à interferência dos Estados-Unidos nos seus assuntos internos: “exprimimos a nossa firme oposição a tal interferência, e adoptaremos acções firmes como resposta”. Quanto aos “direitos humanos”, que dizer dos Estados Unidos? Havia “muitos problemas de direitos humanos nos Estados-Unidos” e não tinham propriamente “começado com o Black Lives Matter”. Qualquer tentativa para derrubar os “assim chamados Estados autoritários”, estava “condenada ao fracasso”. E seria lícito que os Estados Unidos, “campeões em ciberataques e nas suas tecnologias”, acusassem os chineses de ciberataque?
Para fechar, o Conselheiro disse que esperava que a “competição entre os dois países” fosse “sobretudo económica”, acrescentando, como quem arregimenta o resto do mundo como aliado para o duelo, que nem a América nem o Ocidente “representavam hoje a opinião pública mundial”.
Foi, por fim, a vez do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang, que falou em Mandarim, com intérprete. Wang foi mais curto e começou por referir-se aos seus interlocutores americanos como “verdadeiros amigos do povo chinês”. Mas só para sublinhar que a China não tinha aceitado no passado – e não ia aceitar no futuro – “acusações americanas”. Identificou depois os últimos anos (os anos de Trump) como anos difíceis nas relações sino-americanas, mostrando-se, por isso, ainda mais surpreendido que, no dia 17 de Março, os Estados-Unidos tivessem escalado as sanções anti-chinesas por causa de Hong-Kong, interferência com que “o povo chinês se sentira ultrajado”.
A (outra) Guerra Fria
A pergunta que está no ar é se não será esta uma nova Guerra Fria. A expressão Guerra Fria é atribuída a Bernard Baruch, o milionário judeu de Nova Iorque conselheiro de Presidentes americanos, de Wodrow Wilson a J.F. Kennedy. Mas quando Baruch a usou em 1947 já George Orwell a usara, em Setembro de 1945, poucas semanas depois de Hiroxima, intuindo que, com as armas atómicas, a guerra-guerra, a guerra quente, se tornara racionalmente impossível.
A Guerra Fria foi um conflito de longa duração, com limitações cruzadas: em 1949 a União Soviética adquiria a bomba atómica e em 1953 a bomba de hidrogénio; a partir de então vigorou uma dissuasão bilateral que ultrapassou crises como a dos mísseis de Cuba, em 1962, no tempo de Kennedy e Kruschev. A coexistência pacífica dos anos 60, a Détente dos anos 70 e o “Telefone Vermelho” vêm daí.
A confrontação na Guerra Fria foi essencialmente territorial, em blocos de aliados alinhados formalmente (NATO, Pacto de Varsóvia). Os Estados-Unidos tiveram o cuidado de cercar a URSS de alianças regionais – SEATO, CENTO, OEA – e de apoiar países, movimentos e partidos anticomunistas em todo o mundo. Tal como os soviéticos o fizeram com os países, movimentos e partidos comunistas. Houve apoios e intervenções em conflitos periféricos, mas houve também sempre o máximo cuidado de parte a parte de evitar o conflito directo, militar, quente.
Será hoje assim com a República Popular da China?
A China é um Estado ideológico, mas, ao contrário da URSS e dos Estados Unidos na Guerra Fria, não parece querer exportar a sua ideologia, usando-a mais depressa como trunfo privativo. Não tem uma rede de partidos espalhados pelo mundo, com um ideário decalcado do modelo chinês, para promover os ideais chineses ou defender os interesses chineses. Bem pelo contrário, a China, a partir de Deng Xiau Ping, adoptou uma linha exclusiva de nacionalismo identitário capitalista e monopartidário. E na última década, com Xi Jinping, esse poder personalizou-se, num autoritarismo pessoal que foi neutralizando oposições internas, reais ou virtuais. É um regime oficialmente socialista, com centralização estatal, com vigilância, com repressão, mas com uma classe média nascente e com bilionários. Uma pragmática mistura de capitalismo e de socialismo, agilizado pelas empresas estratégicas e pelos novos milionários, levantados do chão mas sujeitos à tutela do Estado ou do Partido, que pode não ter a propriedade ou sequer o lucro dos negócios, mas que tem sobre todos eles suprema autoridade. O trunfo da competitividade e da eficácia estratégica da China é precisamente o casamento da centralização e da mão pesada do Partido e do Estado, herdada de um socialismo que a China reafirma, com um capitalismo de contrafacção, ou seja, um capitalismo sem “chinesices ocidentais” – sem a rédea solta das liberdades e dos direitos individuais, empresariais e laborais e sem divisões ou oposições internas que se vejam ou se oiçam.
Ao contrário da União Soviética, que tinha uma economia de direção central regulada estritamente, uma economia alheada do mercado em que os preços eram fixados pela burocracia estatal, a economia chinesa é atenta ao mercado e está internacionalizada, retendo do socialismo só a parte da direcção central, da vigilância orwelliana e da repressão e silenciamento da dissidência.
E o sistema chinês tem sido um sucesso, com taxas de crescimento excepcionais, a criação de uma classe média significativa (que, ao contrário das análises liberais mais optimistas se mantém integrada no Regime) e um avanço relativo em relação às economias industriais tradicionais da Europa e das Américas.
Nós, os mercados terceiros
Até há pouco, ainda em 2014-2015, a coexistência e a cooperação da China com o Ocidente eram modelares. Interesses económicos à frente de tudo, nada de política, cooperação e cooptação das elites empresariais, funcionais e políticas em toda a parte, fixação de indústrias. E Indústrias vindas de um Euromundo que foi desindustrializando, criando frustração, humilhação e ressentimento nas suas classes operárias.
A disputa era por mercados terceiros – como nas guerras anglo-francesas do século XVIII pelas Américas e pela Índia – e pelos recursos de países terceiros, compradores ou vendedores. E os espaços em disputa, a Europa, a África, a América Latina, actuaram como o antigo bloco neutralista na Guerra Fria, falando com ambas as partes e beneficiando disso, sem restrições, enquanto as escolhas não lhes fossem postas.
A linha dura de Trump, o seu nacionalismo identitário e pouco preocupado com as cortesias e retóricas da diplomacia e do multilateralismo, ajudou a manter essa nossa inconsciente douceur de vivre.
Assim, nós, os mercados terceiros, sobretudo os europeus, habituados ao para-raios do atlantismo militar durante a Guerra Fria, fomo-nos queixando do unilateralismo e das ausências da América e fazendo os nossos negócios com a China. E, com Biden já eleito e o ano a acabar, a Europa fechou um acordo comercial União Europeia/China, sem perguntar nada a Washington.
Mas as coisas parecem estar a mudar. Será esta uma nova Guerra Fria? Ainda não apareceu ninguém com a argúcia e a criatividade de Orwell, para baptizar o tipo de guerra que agora vivemos ou vamos viver, nem com a dimensão e a autoridade de Kennan para sintetizar as raízes da conduta chinesa e articular uma estratégia de resposta. Todos temos uma ideia geral das condicionantes históricas da China moderna – o século da humilhação, das guerras do ópio a 1949; a ideia de uma permanente transcendência do tempo curto e médio, até pela longevidade e estabilidade do poder, sempre de olhos postos, como o Conselheiro Yang Jiechi, em 2035 e 2050; a oferta generosa das novas “Rotas da Seda”; os financiamentos abertos para a África; as compras de empresas na Europa.
Com as crescentes tensões e as recentes acusações de parte a parte no encontro do Alasca, há muito quem se pergunte se estaremos perante uma nova Guerra Fria.
Como em todas as guerras ou competições, o que está em causa são países, mercados, pessoas, lealdades, interesses; mas se esta é uma outra Guerra Fria não lhe faltam pontos quentes e emocionais, pontos de honra, possíveis rastilhos, como, para a China, Hong Kong, o Tibete, Taiwan… E, desta vez, há também novas tecnologias, novos atalhos para galgar distâncias, novas rotas cibernéticas, novos sistemas de comunicação, de destruição e de pirataria, com implicações civis e militares.
Mas porque a força do ferro e do fogo, da Terra e do Céu, parece, por agora, contida e interditada, esta, tal como outra, vai ser também, uma guerra de força política. A força para conquistar as cabeças e os corações – ou para os ir ciberatacando, até que se diluam todas as dúvidas e todas as perguntas num marasmo de pequenas vantagens e de consumo imediato e acrítico.
Mas, antes que seja tarde, convém que não nos esqueçamos pelo menos de uma das dúvidas e das perguntas decisivas: preferimos viver num mundo dominado pela América ou pela China?