Os valores e as regras que regulam a repartição do espaço do mundo entre os Estados e o modo como estes se relacionam são postas em causa sempre que há um conflito geral em que estão envolvidas as grandes potências. Como em qualquer conflito, são geralmente os vencedores que tratam da nova repartição territorial, dispondo dos territórios dos vencidos e estabelecendo regras sobre os valores e princípios que devem passar a regular as relações internacionais. Às vezes vão mais longe e tratam mesmo de universalizar os seus princípios ideológicos e as suas instituições, impondo-os aos vencidos e até aos neutros.

Com a afirmação de novas ordens internacionais já se implantaram organismos multilaterais, teoricamente independentes e igualitários, mas com mecanismos sancionatórios ditados pelos vencedores que punem os prevaricadores. Todos sempre apresentados como grandes conquistas da Civilização e da Humanidade.

Num mundo que começou, modernamente, por ser eurocêntrico e depois se alargou a “todo o globo”, as grandes etapas das ordens mundiais foram a guerra dos Trinta Anos (1618-1648), regulada pelos Tratados da Vestfália de 1648-1649; as guerras da Revolução e do Império (1792-1815), reguladas pelos Tratados de Viena de 1814-1815; a Grande Guerra de 1914-1918, regulada pelo Tratado de Versalhes de 1919; a Segunda Guerra Mundial, que não foi regulada por tratado, já que quer a Alemanha quer o Japão foram obrigados à rendição incondicional (com as conferências entre os vencedores em Ialta e Potsdam e a Carta das Nações Unidas a regularem a repartição territorial e a nova ordem do mundo); e finalmente, a Guerra Fria (1948-1991), que também acabou por não ter tratado de paz firmado, pois a União Soviética implodiu, com os vencedores norte-americanos e, por inerência e conveniência também os europeus, a instituírem a ordem liberal internacional.

Só que para a vitória na Guerra Fria tinham contribuído decisivamente muitos Estados que não eram liberais nem democráticos – como a monarquia saudita, que com a escalada das exportações de petróleo foi decisiva para atirar a URSS de Gorbatchev, empenhada em melhorar a economia, para um buraco negro; e a China comunista que, desde a abertura Nixon-Kissinger a Mao, tinha Moscovo por inimigo principal.

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Destinada ao fracasso

A História, os Estados e os homens têm uma realidade e uma natureza que tem pouco que ver com as narrativas globalmente correctas e o optimismo antropológico hoje instalados como discurso dominante.

Na revista International Security (Primavera de 2019), em “Bound to Fail: the Rise and Fall of the Liberal International Order”, John Mearsheimmer, professor de Ciência Política na Universidade de Chicago, defensor do realismo crítico e autor do famoso The Tragedy of Great Power Politics, explicou porque é que, já então, dava por ultrapassada a ordem internacional liberal.

Para ele, a ordem internacional liberal, em vigor desde o fim da União Soviética (1989-1991) teria curta vida porque “os modernos Estados nacionais” privilegiavam “a soberania e a identidade nacional” que os defendiam das intromissões das instituições multilaterais e das migrações indesejadas. Para esta rejeição também contribuíam razões económicas, na medida em que as classes trabalhadoras e as classes médias dos países mais desenvolvidos passavam a ser vítimas do mercado global, inerente à ordem liberal.

Além disso, a imposição de princípios políticos e de regimes como a democracia liberal, obrigava a uma unipolaridade directora. E a unipolaridade directora existente logo depois do fim da Guerra Fria era americana.

Ora, entretanto, nos vinte e cinco ou trinta anos que se seguiram, a China cresceu e a Índia também. E se a União Soviética desaparecia a Rússia, embora a braços com um sério problema demográfico, continuava a ser um forte poder militar, com uma base energética e alimentar que lhe permitia, para mal do vizinho ucraniano, fazer o que fez e faz. Estados como a Turquia, o Brasil ou a Arábia Saudita, têm políticas de interesse nacional com uma plasticidade sofisticada e pouco ou nada ideológica. E há regiões, como o Médio Oriente e a África Subsahariana, onde, por uma série de razões, a importação da democracia não interessa às elites no poder e as populações privilegiam o desenvolvimento e a estabilidade sobre as liberdades políticas, que veem como um luxo que os desenvolvidos lhes querem impor para melhor as dominar.

O texto de Mearsheimmer é de 2019, mas tudo o que aconteceu desde então veio confirmar a sua análise. A Covid-19 causou uma grande perturbação na comunicabilidade de pessoas e bens e fez regredir o comércio mundial. A invasão da Ucrânia pela Rússia veio mais uma vez confirmar a importância dos nacionalismos: o dos russos, ameaçados por uma penetração ocidental no que consideram o seu Heartland securitário na Eurásia; e o dos ucranianos, afirmado e consolidado na resistência à invasão russa.

Interregno multipolar

Outros fenómenos recentes reforçam a ideia de que caminhamos para uma ordem multipolar, como a nova etapa de crescimento dos BRIC. Dos seis novos membros que agora se juntam aos fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), um é sul-americano (a Argentina), três médio orientais (a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irão) e dois africanos (o Egipto e a Etiópia). Quando se olha para a dispersão continental, para a disparidade ideológica e de regime e para o poderio demográfico e económico de todos estes Estados, percebe-se que os BRIC, não hostilizando directamente a ordem liberal ainda vigente (o Brasil, a Argentina, e mesmo a Arábia Saudita, o Egipto e os Emirados, dada a relação com Washington, não se atreveriam a tal), estão claramente noutro comprimento de onda.

Entretanto, a Índia, ao assumir-se como cabeça do “Sul Global” sob o governo de um nacionalista realista como Narendra Modi e tendo exercido um papel chave de ponte mediadora na reunião do G-20, tem vindo a afirmar-se neste interregno como um terceiro eixo de poder.

É como se, neste caminho para uma nova ordem – ainda não estamos numa ordem delineada, como a de Viena ou de Ialta –, houvesse um polo em Washington, outro em Pequim e um terceiro em Nova Deli, um bloco neutralista à moda de Bandung mas mais poderoso.

Esta é a realidade dos Estados e das relações de continuidade e de ruptura entre eles. Não podemos confundir os esforços para melhorar este mundo, comandados pela ética e pelo humanismo, cristão ou agnóstico, com a hipócrita ou estúpida ignorância da realidade. Uma das características do pensamento ocidental foi a consciência de que os ideais de que nos podíamos e devíamos aproximar eram uma meta tão essencial quanto inalcançável.

Na definição dos ideais e na forma como devem afirmar-se, ou na sua expedita redefinição e “implementação universal”, a ordem liberal internacional que ainda vigora nas relações internas entre o bloco norte-americano e europeu, a NATO e a União Europeia, tornou-se refém de movimentos minoritários, mas com grande poder de manipulação e imposição cultural. Movimentos empenhados na aplicação arrogante, cega e aleatória da dialéctica opressor-vítima a todos os tempos e espaços e a todas as realidades culturais e sociais.

E isso que “o resto do mundo” rejeita.