Na votação sobre a eutanásia que amanhã terá lugar no nosso Parlamento, não está “apenas” em causa a escolha sobre a matéria ética da eutanásia — o que certamente já não seria pouco. Está também em causa — e, em termos estritamente políticos, talvez fundamentalmente — a relação de confiança entre os deputados e os seus eleitores. É sobretudo neste plano político que é surpreendente o comportamento dos nossos dois maiores partidos democráticos — o PS e o PSD.

Nenhum destes partidos fez referência ao tema da eutanásia nos seus manifestos eleitorais. O tema nunca foi discutido nas suas campanhas eleitorais. Acresce que os seis últimos Bastonários da Ordem dos Médicos, incluindo o actual, declararam a sua oposição à legalização da eutanásia.  E uma inédita declaração conjunta de representantes de oito comunidades religiosas condenou a eutanásia. Apesar disso, o PS decidiu manter a sua proposta de legalização da eutanásia, a somar à do BE e à do PAN. E o PSD candidamente declarou neutralidade sobre o tema.

A pergunta é a seguinte: sabem os deputados do PSD e do PS qual é o sentimento dominante dos seus eleitores sobre a matéria da eutanásia? Não pretendo sugerir que os deputados devam sempre seguir o sentimento dos seus eleitores. Mas seguramente sustento que devem entrar em conversação com eles e cruzar argumentos com quem os elege sobre matérias indiscutivelmente cruciais.

Sei que está na moda tratar os eleitores como “pouco esclarecidos” e “reféns do populismo”. Vários livros bizarros têm recentemente sido escritos para “provar” a ignorância dos eleitores e a sua incapacidade de escolher com conhecimento de causa. Essa tem sido uma das — a meu ver muito pobres — explicações da popularidade dos partidos chamados “populistas”.

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Há, no entanto, uma outra explicação bastante plausível do fenómeno populista, corroborada pela generalidade dos inquéritos de opinião: crescentes faixas dos eleitorados nas democracias europeias e nos EUA percepcionam os decisores políticos como indiferentes — quando não premeditadamente hostis — aos seus pontos de vista e até aos seus modos de vida. Uma boa parte desta hostilidade é sentida precisamente nas questões fracturantes que parecem estar na moda entre certos sectores ditos “esclarecidos”. A questão da eutanásia é seguramente uma questão maior entre as várias questões “fracturantes”.

Por este motivo estritamente político — compatível aliás com diferentes posições éticas sobre a eutanásia — lamento ter de dizer que a eventual aprovação da eutanásia amanhã no Parlamento constituiria uma irresponsável aventura política.

Que essa aventura seja zelosamente defendida pelo Bloco de Esquerda não me surpreende. É possível que a proposta de legalização da eutanásia possa até corresponder ao sentimento dominante entre os poucos eleitores do BE (que aliás se consideram uma “vanguarda esclarecida”). O Partido Comunista, em contrapartida, apesar de também se considerar uma “vanguarda”, parece ter sensatamente percepcionado que a proposta não estaria em consonância com o seu eleitorado . O CDS desde o início declarou a sua oposição à proposta, o que parece claramente em consonância com o ideário do partido e com o sentimento dominante entre os seus eleitores. Mas o comportamento dos dois maiores partidos do nosso regime democrático, o PS e o PSD, é dificilmente compreensível.

Em suma, na votação de amanhã, todos os deputados devem ter consciência de que enfrentam uma dupla escolha: uma diz respeito à matéria ética da eutanásia; a outra diz respeito à relação de confiança entre eles e os seus eleitores. Para os defensores da democracia representativa e da confiança dos eleitores no seu Parlamento, a segunda deveria amanhã ter prioridade sobre a primeira. E um novo debate sobre a eutanásia poderia ser tranquilamente agendado para depois das próximas eleições parlamentares — que aliás deverão ocorrer já no próximo ano.