Na votação sobre a eutanásia que na quinta-feira terá lugar no nosso Parlamento, não está “apenas” em causa a escolha sobre a matéria ética da eutanásia — o que certamente já não seria pouco. Está também em causa — e, em termos estritamente políticos, talvez fundamentalmente — a relação de confiança entre os deputados e os seus eleitores. É sobretudo neste plano político que é surpreendente o comportamento dos nossos dois maiores partidos democráticos — o PS e o PSD.

Nenhum destes partidos fez referência ao tema da eutanásia nos seus manifestos eleitorais. O tema nunca foi discutido nas suas campanhas eleitorais. Acresce que os seis últimos bastonários da Ordem dos Médicos, incluindo o actual, declararam a sua oposição à legalização da eutanásia. E uma inédita declaração conjunta de representantes de oito comunidades religiosas (incluindo cristãos, judeus, mórmons, hindus, budistas e muçulmanos), condenou em 2018 a eutanásia — e voltou agora a fazê-lo. Apesar disso, o PS decidiu manter a sua proposta de legalização da eutanásia, a somar à do BE, à do PAN, do PEV, e agora também à da IL. E o PSD candidamente declarou neutralidade sobre o tema — o que em primeiro lugar significa neutralidade sobre a hipótese de aprovação da eutanásia sem prévia discussão do tema com os eleitores.

A pergunta é a seguinte: sabem os deputados do PSD e do PS qual é o sentimento dominante dos seus eleitores sobre a matéria da eutanásia? Não pretendo sugerir que os deputados devam sempre seguir o sentimento dos seus eleitores. Mas seguramente sustento que devem estar em conversação com eles e cruzar argumentos com quem os elege sobre matérias indiscutivelmente cruciais.

Sei que está na moda tratar os eleitores como “pouco esclarecidos” e “reféns do populismo”. Vários livros bizarros têm recentemente sido escritos para “provar” a ignorância dos eleitores e a sua incapacidade de escolher com conhecimento de causa. Essa tem sido uma das — a meu ver muito pobres — explicações da popularidade dos partidos chamados “populistas”.

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Há, no entanto, uma outra explicação bastante plausível do fenómeno populista, corroborada pela generalidade dos inquéritos de opinião: crescentes faixas dos eleitorados nas democracias europeias e nos EUA percepcionam os decisores políticos como indiferentes — quando não premeditadamente hostis — aos seus pontos de vista e até aos seus modos de vida. Uma boa parte desta hostilidade é sentida precisamente nas questões fracturantes que parecem estar na moda entre certos sectores ditos “esclarecidos”. A questão da eutanásia é seguramente uma questão maior entre as várias questões “fracturantes”.

Por este motivo estritamente político — compatível aliás com diferentes posições éticas sobre a eutanásia — lamento ter de dizer que a eventual aprovação da eutanásia no Parlamento, sem ter havido um debate prévio com os eleitores, constituiria uma irresponsável aventura política.

Que essa aventura seja zelosamente defendida pelo Bloco de Esquerda não me surpreende. É possível que a proposta de legalização da eutanásia possa até corresponder ao sentimento dominante entre os poucos eleitores do BE (que aliás se consideram uma “vanguarda esclarecida”). O Partido Comunista, em contrapartida, apesar de também se considerar uma “vanguarda”, parece ter sensatamente percepcionado que a proposta não estaria em consonância com o seu eleitorado . O CDS desde o início declarou a sua oposição à proposta, o que parece claramente em consonância com o ideário do partido e com o sentimento dominante entre os seus eleitores. Mas o comportamento dos dois maiores partidos do nosso regime democrático, o PS e o PSD, é dificilmente compreensível.

Em suma, na votação da próxima quinta-feira, todos os deputados devem ter consciência de que enfrentam uma dupla escolha: uma diz respeito à matéria ética da eutanásia; a outra diz respeito à relação de confiança entre eles e os seus eleitores. Para os defensores da democracia representativa e da confiança dos eleitores no seu Parlamento, a segunda deveria ter prioridade sobre a primeira. E um genuíno debate público sobre a eutanásia poderia ser tranquilamente promovido em seguida — o que, aliás, devia ter sido activamente promovido na mais recente campanha eleitoral, sobretudo pelo PS e pelo PSD, que já enfrentaram uma situação idêntica em Maio de 2018.

Na verdade, o argumento que acabo de apresentar é exactamente idêntico ao que aqui apresentei naquela altura — quando as propostas favoráveis à eutanásia foram sensatamente derrotadas no Parlamento. Para protecção da democracia parlamentar, o mesmo deveria acontecer na próxima quinta-feira. Se isto não acontecer, julgo que o Presidente da República deveria recordar ao país os princípios subjacentes a uma democracia parlamentar que presta contas aos seus eleitores — e deveria agir em conformidade.