Prevê-se que a votação final global da proposta de lei que, no nosso país, se propõe legalizar a eutanásia e despenalizar o suicídio assistido, tenha lugar no hemiciclo da Assembleia da República, no próximo dia 29 de Janeiro. Curiosa coincidência: foi precisamente nesse dia do ano passado que, em sessão plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, se aprovou a carta Samaritanus bonus, “Sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida”. O Papa Francisco, a 25 de Junho de 2020, aprovou este documento, elevando-o à condição de magistério pontifício, e ordenou a sua publicação.
A eutanásia pode ser considerada desde muitas perspectivas, mas a mais importante não é certamente a técnica, nem a partidária, mas a moral: é lícito pôr termo a uma existência humana dolorosa, com a intenção de assegurar uma ‘morte digna’? A Igreja contribui para este diálogo, que o parlamento não permitiu que fosse alargado, mediante referendo, a toda a sociedade civil, por via dos seus ensinamentos, vinculativos para todos os fiéis e instrutivos para os que não professam a religião cristã.
Sobre este tema, mais do que opiniões pessoais, necessariamente subjectivas, interessa conhecer o parecer da Carta Samaritanus bonus, o mais recente texto do magistério da Igreja sobre esta temática.
Segundo os princípios básicos da teologia moral, a bondade de uma acção decorre do seu objecto, fim e circunstâncias. Enquanto a intenção do sujeito pode, eventualmente, perverter uma acção em si mesma boa, como seria querer humilhar a quem se dá uma esmola, a recta intenção não é suficiente para converter em boa uma acção cujo objecto é intrinsecamente mau: o propósito de ajudar os pobres não legitima o roubo.
A questão da intenção do sujeito é relevante, na medida em que a eutanásia não é pretendida com o intuito de fazer sofrer mas, pelo contrário, de aliviar quem já padece uma enfermidade incurável e se encontra em estado terminal. Em termos humanitários, poderia parecer que, num contexto de grande sofrimento, abreviar a vida do paciente seria não só legítimo como, até, um dever moral, na medida em que manter uma vida em grande sofrimento parece cruel, sobretudo se é só por um prurido moral.
Neste sentido, é especialmente oportuna a declaração de que “a Igreja considera que deve reafirmar, como ensinamento definitivo, que a eutanásia é um crime contra a vida humana porque, com este acto, o homem escolhe causar directamente a morte de um outro ser humano inocente.” A afirmação não poderia ser mais explícita, nem mais contundente, porque é “como ensinamento definitivo”, ou seja irreformável, que se afirma que “a eutanásia é um crime contra a vida humana”, já que é, na sua essência, “causar directamente a morte de um outro ser humano inocente”, ou seja, matar.
E a intenção, certamente bondosa, de quem pretende, por esse meio, aliviar o sofrimento de alguém que está em grande sofrimento e num estado terminal?! A esta questão, a Samaritanus bonus recorda que essa intenção, decerto louvável, não justifica o acto de matar um ser humano inocente: a avaliação moral da eutanásia, “bem como a das consequências que dela derivam, não depende, portanto, de um balanço de princípios que, de acordo com as circunstâncias e o sofrimento do paciente, poderiam, segundo alguns, justificar a supressão da vida da pessoa doente. O valor da vida, a autonomia, a capacidade de decisão e a qualidade de vida não estão no mesmo plano.”
Embora possa parecer desumana esta intransigência, compreende-se que a vida, a dignidade e a liberdade humanas não sejam, em nenhuma circunstância, negociáveis. Não há, portanto, nenhum caso em que seja lícito privar da liberdade, da dignidade ou da vida um ser humano inocente. Nem sequer se essa for a sua consciente e reiterada vontade porque, como se disse, “a autonomia, a capacidade de decisão e a qualidade de vida não estão no mesmo plano” do que o direito à vida. Precisamente porque os direitos humanos não são disponíveis, nem sequer pelo próprio titular, seria nula de pleno direito a renúncia à própria vida, liberdade ou dignidade.
Por isso, conclui o Papa Francisco: “A eutanásia é um acto intrinsecamente mau, em qualquer ocasião ou circunstância. A Igreja já afirmou no passado de modo definitivo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Esta doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal”, ou seja, tem carácter dogmático e, portanto, não é reformável: daí a insistência em definir, como “definitivo”, este ensinamento da Igreja.
Enquanto o suicídio pode ser uma acção solitária, o mesmo não acontece com a eutanásia, que pressupõe a colaboração de terceiros. A questão da responsabilidade moral dos que participam nesse acto é também avaliada neste documento da Santa Sé, que não deixa dúvidas sobre a matéria: “Qualquer cooperação formal ou material imediata com tal prática é um pecado grave contra a vida humana: Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a Humanidade. Por este motivo, a eutanásia é um acto homicida que nenhum fim pode legitimar e que não tolera nenhuma forma de cumplicidade ou colaboração, activa ou passiva.” Para efeitos morais, a privação da alimentação, ou dos cuidados médicos não extraordinários, está equiparada à eutanásia, na medida em que também causa, por omissão, a morte de um ser humano inocente.
Por último, este documento da Congregação para a Doutrina da Fé, aprovado pelo Papa Francisco, é especialmente incisivo em relação à responsabilidade moral dos legisladores: “Aqueles que aprovam leis sobre a eutanásia e o suicídio assistido tornam-se, portanto, cúmplices do grave pecado que outros realizarão. Eles são também culpados de escândalo porque estas leis contribuem para deformar a consciência, mesmo dos fiéis.”
In dubio, pro reo – ou seja, quando há dúvida quanto à responsabilidade criminal de alguém, há que decidir em seu favor, porque mais vale absolver um culpado, do que condenar um inocente. Pois bem, o mesmo se diga em relação à eutanásia: in dubio, pro vita!