Em Fevereiro de 2016, subscrevi o manifesto “Direito a morrer com dignidade”, que teve o impulso decisivo de João Ribeiro Santos e Laura Ferreira dos Santos, ambos já falecidos, a quem devemos o oportuno debate hoje em curso na sociedade portuguesa acerca da eutanásia.
Defendo por isso a despenalização e regulamentação da morte assistida, quer quando é o próprio doente a administrar o fármaco letal, quer quando este é administrado por terceiro. Entendo que esse é um direito do doente em grande sofrimento e sem esperança de cura. Em casos excepcionais, em último recurso – em situações clinicamente irreversíveis e de sofrimento extremo –, quando os cuidados paliativos já não são uma alternativa, o direito a morrer em paz deve ser assegurado, a quem, de uma forma livre e informada, o queira exercer.
Todavia, tenho consciência dos enormes problemas morais, jurídicos, científicos, médicos e religiosos que se suscitam. É uma área onde se estão a dar os primeiros passos, que ainda poucos países, e apenas recentemente, se atreveram a regular. É fácil formular o conceito geral de um quadro de sofrimento extremo, numa situação clínica incurável, quando os cuidados paliativos já não são alternativa, mas é muito difícil estabelecer as fronteiras do que é admissível e do que não o é.
O estudo de uma casuística, que já existe, pode ajudar ao esclarecimento. E devo dizer que me assustam os números de eutanásias consentidas nos países que já as autorizaram. São realidades que devemos conhecer melhor, para termos uma opinião livre acerca dos limites que não podem nem devem ser ultrapassados.
Seria absolutamente intolerável que, ao abrigo de uma intenção legítima e orientada para assegurar a dignidade de quem está numa situação terminal, justificada por um verdadeiro amor ao próximo e inspirada em valores de beneficência, misericórdia e respeito pela vida, viéssemos a permitir uma sociedade amoral, cruel e egoísta, que facilita, ou até encoraja, a morte daqueles que perderam a esperança.
Devemos ser de uma exigência extrema na avaliação das questões que o assunto suscita. Não nos podemos permitir errar quando está em causa o direito à vida.
É por isso que não compreendo as iniciativas legislativas que se anunciam por parte do Partido Socialista, do Bloco de Esquerda e do PAN, no sentido de legislar já – li que até ao Verão – sobre a despenalização e regulamentação da morte assistida.
Recordo que nem o Partido Socialista, nem o Bloco de Esquerda – como, de resto, nem a CDU, nem o PSD, nem o CDS – referiram o que quer que fosse acerca dessa intenção legislativa quando apresentaram os seus programas eleitorais às eleições legislativas de Outubro de 2015. Em bom rigor, a eutanásia nem sequer foi aflorada sob qualquer ângulo. Por seu turno, o PAN limitou-se a inscrever no seu programa a intenção de promover “fóruns de discussão”, que abrissem “o debate sobre a legalização da Eutanásia em Portugal.”.
Não ignoro que a Assembleia da República detém a legitimidade jurídica para legislar sobre este assunto no decurso desta legislatura. Mas não tem nem legitimidade política nem moral para o fazer.
Do ponto de vista político, como é que os partidos representados na Assembleia da República, que desconsideraram essa possibilidade quando se apresentaram a votos, se atrevem, à revelia dos seus compromissos eleitorais, a legislar sobre este tema de tamanha gravidade, dificuldade e delicadeza? Há algum dado novo – incontornável e surpreendente – que os obrigue a dar este passo agora, quando antes não tinham opinião sobre a matéria? Receio bem que estejamos mais uma vez, em nome de uma agenda mediática, ditada por pequenos interesses, a ofender valores fundamentais da democracia política.
Mas é sobretudo a questão moral que sobressalta a minha consciência e me obriga a vir a terreiro, correndo até o risco de, provavelmente, desiludir aqueles que comigo subscreveram o manifesto de Fevereiro de 2016. Porém, não podia ficar calado.
Temos a obrigação de conhecer melhor, de conhecer tudo o que pudermos conhecer, acerca de um tema que ainda por cima sabemos que vai dividir a sociedade portuguesa. E de o discutir, de forma alargada e sem limite de tempo, com aqueles que não pensam como nós. Bastará recordar que os médicos que já exerceram o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos – pelo menos, todos aqueles que eu ouvi – pronunciaram-se perentoriamente contra o direito à eutanásia, defendendo que os médicos, por uma razão de ética profissional, se devem recusar a participar nesse procedimento. Ora, não é admissível pensar em regular esta matéria sem o contributo dos médicos, sob pena de avançarmos para um processo legislativo sem qualquer ligação com a realidade.
A hora é de debate. De estudo exaustivo das experiências que já se conhecem. De conhecimento profundo acerca dos verdadeiros limites dos cuidados paliativos. De confronto de todas as opiniões e de todas as teses, no âmbito científico, filosófico, jurídico ou até religioso. De talvez se fazer um grande livro branco que possa esclarecer a consciência de cada um.
Só depois, e não seguramente nesta legislatura, é que se pode tomar a decisão de legislar ou não, e em que sentido. Oxalá que pelo menos o bom senso prevaleça na consciência dos deputados portugueses.