1. Em 2016, subscrevi o manifesto “Direito a morrer com dignidade”, onde se defende a necessidade de legislar sobre a despenalização e regulamentação da morte assistida (quer a eutanásia propriamente dita, quer o suicídio acompanhado). Porém, em 2018, confrontado com a acção legislativa de partidos políticos que não tinham inscrito a matéria nos seus programas eleitorais (só o PAN tratara do assunto, referindo a intenção de promover “fóruns de discussão”), manifestei aqui, sob o título “Eutanásia, não decidir apressadamente”, as minhas reservas sobre a oportunidade da iniciativa.

2. A vida humana é inviolável. Trata-se de um valor sagrado que só em excepcionais ocorrências de conflito com outros valores igualmente intocáveis se pode limitar ou condicionar. É assim incontroversamente na legítima defesa ou num quadro de guerra. Mas, para mim, é também assim com a interrupção voluntária da gravidez ou com a morte medicamente assistida, quando esteja em causa a defesa da dignidade humana. O artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem começa precisamente por afirmar que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade, tal como o artigo 1.º da nossa Constituição proclama Portugal como uma república baseada na dignidade da pessoa humana.

3. Naquele manifesto defende-se a despenalização da morte medicamente assistida quando, no quadro de uma opção livre e consciente, um doente pede ajuda para morrer em caso de sofrimento insuportável, duradouro e irreversível. Quando essas situações forem evidentes por si mesmas, é por um dever de humanidade e compaixão que à minha consciência se impõe aquele acto compassivo e de beneficência. De resto, é por isso que, nalguns países (Itália, Japão ou Colômbia, por exemplo), alguma jurisprudência tem reconhecido que, a título excepcional, não são puníveis actos dessa natureza em contexto de incontornável conflito de deveres. Ou seja, a legislação é necessária para conferir segurança e estabilidade às nossas referências, mas aquilo que a determina vem, afinal, antes disso, como que inerente à natureza humana.

4. Acontece, contudo, que as coisas não são assim tão simples. Primeiro, porque a noção de uma dor insuportável e definitiva tem várias leituras, para além daquelas situações evidentes por si mesmas. Segundo, porque há muitas zonas cinzentas no exercício da liberdade de cada um. Terceiro, porque tais opções não podem ser vistas fora do contexto da existência (ou não) de cuidados paliativos alternativos, que anulem ou mitiguem o sofrimento, o que naturalmente é susceptível de se repercutir na liberdade da escolha.

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5. Perante as dificuldades e a complexidade do assunto, legislar sobre a eutanásia pressupõe um debate que já começou, mas que ainda não esclareceu todas as dúvidas sobre o caminho a seguir. Falta a avaliação de uma casuística que nos permita saber se estamos todos a falar do mesmo. Quando subscrevi aquele manifesto, aquilo que eu tinha em mente eram aquelas situações evidentes por si mesmas em que ajudar alguém a morrer é um acto de misericórdia. Intuía que isso poderia acontecer algumas vezes por ano (em casos como o do espanhol Ramón Sampedro ou mais recentemente do italiano Fabiano Antoniani, ou quando os cuidados paliativos sejam insuficientes para controlar a dor). Não imaginava que isso pudesse ocorrer milhares de vezes por ano, como actualmente já acontece na Holanda ou na Bélgica (5% e 2,5% das mortes, respectivamente).

6. A percepção que vou tendo das notícias que vêm dos países onde a eutanásia foi despenalizada não me sossega. Receio mesmo que se esteja perante aquilo que se tem chamado de “rampa deslizante”. Eu esperaria que, depois de alguns anos de adaptação, o recurso à eutanásia fosse diminuindo na proporção inversa do aumento das possibilidades de vida digna que os cuidados paliativos e a medicina proporcionam. Mas aquilo a que se assiste na Bélgica e na Holanda é precisamente ao contrário. Cresce o número de mortes por eutanásia, a qual tende a banalizar-se, ao ponto de hoje na Holanda já se discutir a venda de comprimidos letais para quem, com mais de setenta anos, esteja cansado de viver.

7. O futuro da humanidade por que eu anseio e luto, é aquele em que crescem as condições para que todos tenham uma vida digna e justa. O problema da eutanásia, como, aliás, decorre dos projectos em apreciação, não é apenas uma questão de liberdade individual. Se assim fosse, estaríamos a discutir, como na Holanda, a venda dos comprimidos letais. É também o das condições que damos às pessoas para acharem que vale a pena continuar a viver. Tem havido debate, é certo, mas quase sempre sobre aspectos gerais, sem descer ao concreto do que justifica ou não a eutanásia e de qual a esperança que podemos depositar em cuidados paliativos que anulem ou mitiguem a dor. Num país em que a maioria da população não tem direito a tais cuidados paliativos (há distritos em que não há uma única cama para esse fim), sem uma reflexão acerca de uma casuística da dor insuportável e irreversível que nos permita saber realmente o que está em causa, sem atender ao que as experiências estrangeiras já nos podem ensinar, julgo que é prematuro legislar sobre a eutanásia.

8. Eu gostava que o debate em falta fosse feito serenamente e sem pressa na Assembleia da República. Choca-me que uma maioria de deputados de partidos que não inscreveram o tema nos seus programas eleitorais (só BE, PAN, Iniciativa Liberal e LIVRE é que o fizeram) possa aprovar uma legislação que muda radicalmente a nossa forma colectiva de lidar com a fronteira entre a vida e a morte. Não discuto a legitimidade jurídica, mas a política e ética. É isso que me sobressalta e me leva a dizer que, sendo assim, e indo os deputados votar de acordo com a sua consciência (sem disciplina de voto), então prefiro que a opção seja tomada por referendo, o que permite alargar a discussão e colocar a questão da consciência individual não em 230 deputados, mas nos milhões de eleitores que somos.

9. Respeito o argumento de que os direitos fundamentais não podem ser sujeitos a referendo. É também a minha posição se estiverem em causa valores constitucionais consagrados e incontroversos. Por exemplo, não se poderia referendar a pena de morte, a prisão perpétua, a tortura ou a aplicação de penas cruéis (como a castração química), desde logo porque o Tribunal Constitucional não admitiria que a alternativa fosse colocada a votos. Porém, em matéria de conflito de direitos e deveres, em que a Constituição é neutra – como o Tribunal Constitucional declarou em relação à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, e estou convencido que decidirá neste tema (salvo melhor opinião, claro) –, não vejo qualquer fundamento válido para não devolver à comunidade dos cidadãos o direito de decidir. É a vantagem da democracia.