Em 1981 o filósofo Jurgen Habermas escreveu o livro Teoria da ação comunicativa (TAC) acerca das relações entre o ator e o sistema, uma teoria da razão crítica acerca da interação social entre a lógica da vida ao quotidiano e a lógica do sistema dominante e da sua razão instrumental. Segundo Habermas, a comunicação humana na vida quotidiana tem uma racionalidade própria e regras próprias para a boa utilização da linguagem e é através da linguagem que aprendemos e conhecemos, que comunicamos e socializamos, que argumentamos e construímos o entendimento comum, que estruturamos a esfera pública e o diálogo democrático.
Ora, no atual contexto, rodeados de plataformas, redes e aplicativos por todos os lados, vivemos uma verdadeira vertigem informativa que altera substancialmente a nossa perceção da realidade e gera muita agitação no nosso sistema cognitivo, assim como, o risco permanente de colisão entre o ator e o sistema. De facto, a vertigem informativa em que estamos mergulhados afeta a perceção da realidade, o processo e o procedimento científico, mas, também, o papel e a função da cultura geral que, agora, passa por um processo de desconstrução devido à alucinação e à loucura provocadas por este oceano de informação. Com efeito, não é só a diferença entre verdadeiro e falso que está em causa, é, ainda, o défice de empatia entre os seres humanos, agora substituído pela bolha das emoções na colónia virtual, uma espécie de nova tirania dos sentimentos. Que comunicação humana é esta e com que densidade linguística?
De um ponto de vista histórico-epistemológico, depois da imprensa, dos livros e jornais, depois da rádio e televisão, temos agora a internet, os computadores, os smartphones, as redes sociais e a inteligência artificial, ou seja, estamos a assistir a uma transformação estrutural da esfera pública na era da sociedade digital, ou, como diria, Jurgen Habermas, precisamos de nos questionar de novo sobre a teoria e a prática do agir comunicacional ou da ação comunicativa. Estamos claramente num ponto de viragem, mas ainda não sabemos se somos nós, os humanos, a reinventar o grande compromisso da política, ou se é a digitalização da sociedade engendrada por máquinas inteligentes e algoritmos a impor a normalização e padronização dos nossos comportamentos.
Uma das manifestações mais virulentas deste empobrecimento diz respeito ao que pode ser designado como a expropriação da linguagem. Com efeito, temos a sensação amarga de que estamos, de certo modo, a experimentar o princípio do fim do nosso universo comunicacional, ao trocarmos progressivamente o sistema operativo do nosso dispositivo alfabético, rico simbolicamente, por uma linguagem binária ultra simplificada e pobre simbolicamente. De facto, a linguagem já não é o que costumava ser, uma semântica a tempo inteiro. Ela foi expropriada. No dia a dia, já não falamos uns com os outros, agora, comunicamos uns com os outros por via de um qualquer dispositivo tecnológico ou digital. Ao simplificarmos a linguagem simplificamos, também, a leitura da realidade e, portanto, o seu sentido e significado, a sua plurissignificação. Ou seja, a revolução das tecnologias digitais poderá revelar-se ainda mais poderosa do que a revolução da imprensa de Gutenberg e provavelmente mais cruel, uma vez que, neste momento, uma parte significativa da imprensa livre que fundou o 4º poder no século XX, está, cada vez mais, à beira do abismo. E onde está a imprensa livre para nos proteger e avisar do condicionamento algorítmico que irá comandar e recomendar o nosso comportamento por via dos nossos reflexos condicionados?
Tudo leva a crer que a semântica da web já está em rota de colisão com os nossos reflexos incondicionados, desajeitados e desalinhados, com o nosso livre-arbítrio, afinal. E se, em desespero de causa, trocarmos a irreverência da liberdade pela reverência da segurança? É preciso lembrar, ainda, a este propósito, que os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática. Ao ser tudo isto, o algoritmo revela aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de homens sem rosto e causas furtivas, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes.
No resto, a semântica própria dos vários veículos tecno-digitais, imprensa online e redes sociais oferece-nos muito por onde escolher: linguagem publicitária e buzzwords para todos os gostos, as funcionalidades mais diversas, sms, tweets, blogs e emails, as linguagens próprias dos líderes do comentário e da escrita de opinião e até, imagine-se, o discurso politicamente correto. Os circuitos curtos das redes sociais e os écrans multicanais tomaram conta da ocorrência e a regra é, agora, uma mistura leviana de pobreza linguística, exuberância gratuita e desprezo pela memória e inteligência dos leitores.
Já sabíamos, há muito, que a nossa racionalidade era limitada, mas também sabemos que fomos capazes de encontrar um fundo comum de discussão em que a contextualização, a argumentação e o contraditório fazem parte da nossa racionalidade comunicativa. É esta ação comunicativa a base da nossa esfera pública democrática tal como a conhecemos no mundo ocidental onde a divisão tripartida dos poderes e as liberdades públicas asseguram, apesar do ruído, o compromisso da política e a política do compromisso. Ora, a transição para a sociedade digital faz emergir uma outra racionalidade comunicativa, uma espécie de física social, onde o Big Data, a lógica algorítmica, as máquinas inteligentes e a inteligência artificial aparecem como um equivalente funcional da esfera pública e da vontade geral de outros tempos. Estamos, assim, perante uma teoria behaviorista e utilitarista do comportamento humano que a racionalidade digital normalizou e padronizou por via da informação e dos dados que nós produzimos constantemente e que, além disso, nos conduzirá, finalmente, até à verdade última sem o ruído e o desperdício da racionalidade comunicativa anterior.
Em suma, uma física social pretensamente superior à racionalidade do agir comunicacional e superior à discussão, à argumentação e à comunicação que a constituem. É certo, nós não somos como as abelhas que funcionam de acordo com as leis de uma certa física social e, além disso, os enxames digitais são bolhas de consumo e comunicação muito mais perigosas. Não obstante esses riscos, a tendência da sociedade digital acentua-se, o espaço público democrático é, cada vez mais, centrifugado pelas plataformas descentralizadas e distribuídas que se revelam incapazes de ação política e cognitiva consequente. Em síntese, a vertigem informativa e a adição digital retiram clareza e discernimento à ação e racionalidade comunicativas.
Temos, assim, em confronto direto uma coabitação que se afigura difícil e complexa. De um lado, o pluralismo, a diversidade representativa e a opinião dos outros, uma racionalidade própria da discussão, da argumentação e da dialética discursiva que enriquece e constrói a democracia política. Do outro lado, temos a privatização e a tribalização da internet e uma revisão dos factos em nome de uma verdade identitária e corporativa. Doravante, o contexto conta pouco, os argumentos não contam, deixa de haver debate e discussão, a ação comunicativa desvanece-se e dissimula-se.
Dito isto, não podemos, todavia, prescindir do compromisso da política porque um somatório de esferas privadas não faz uma esfera pública e as desigualdades sistémicas não foram eliminadas, além de que os instrumentos da sociedade digital são muito preciosos para construir a convergência entre valores pessoais e valores sociais.
Nota Final
Em síntese, e ainda de acordo com Habermas, temos, de um lado, o mundo da vida e, do outro, o poder e a vigilância do sistema. Uma vez que as patologias da modernidade foram revistas e atualizadas pela irrupção do universo tecno-digital é um imperativo ético manter a razão crítica em estado de alerta e a ação comunicativa da sociedade aberta em plena operação. Com efeito, não podemos tolerar que a embriaguez informativa mantenha as pessoas na ignorância e que a vertigem informativa crie uma agitação tal no sistema cognitivo que destrua a perceção da realidade e a ação racional comunicativa. Estamos já algures entre o capitalismo de informação e o capitalismo de vigilância, todavia, por mais inteligentes que sejam, os algoritmos não eliminam a memória, a contingência e a imaginação. Não obstante, a saturação informativa faz-nos perder o impulso para a verdade. Nada parece confiável. A razão corporativa e a razão instrumental prevalecem sobre a razão comunicativa e a reprodução do sistema acontece.
Voltemos, pois, ao essencial, à dialética do esclarecimento, para começar a razão pura da ética do cuidado e do bem comum, depois a razão prática do senso comum e do bom senso, finalmente, o fundo comum das coisas e a racionalidade da ação comunicativa. Por tudo isso, a nossa dúvida existencial permanece. Perante a vertigem e a embriaguez informativas, que fala e comunicação discursiva tem hoje o cidadão comum? Que uso faz da linguagem para efeitos de ação racional comunicativa? Que empatia revela pelo seu semelhante? Que humanidade estamos nós a construir hoje no limiar do transumanismo e da pós-humanidade? Aos 95 anos, precisamos urgentemente que Jurgen Habermas venha em nosso auxílio.