No tempo da troika pus uma surdina em considerações demasiado ácidas sobre os então responsáveis: o país estava sob tutela, tinha a autonomia que os credores consentiam e inimigos do Governo não faltavam.
Os comunistas gostariam de escaqueirar tudo e renegociar a dívida, por a União Europeia não ser uma versão do Comintern, caso em que o seu deles alegado patriotismo passaria a internacionalismo; o Bloco, com mais acne do que hoje (confessam-se agora social-democratas – o bem que fazem uns lugares no aparelho de Estado e a participação na governação), afinava pelo mesmo diapasão, ou recomendava mesmo o calote; e a comunicação social explicava com empenho, convencendo muitos, que a falência do país não foi engendrada pelo PS mas pela crise, e que não foi este indispensável partido, mas a execranda Oposição, a negociar o Memorando de Entendimento.
Passos desenrascou-se bem e ganhou um crédito que muitos (e eu com eles) acham que, para bem do país, permanece intocado, à espera de investimento.
Apesar dos jornais e das televisões, a PàF ganhou em Outubro de 2015, ficando a 9 deputados da maioria absoluta. Na campanha não fora apresentada a coligação vermelha, mas com ela o menino de oiro da comunicação social, e do Portugal de Abril (isto é, deste que ao fim de quatro décadas se bate para não ser ultrapassado pela Letónia, Eslováquia e Roménia, além dos outros que já nos deixaram para trás, porque pela Polónia e Hungria é já praticamente trigo limpo), o estadista Costa, tirou da cartola a maioria de esquerda e lá está, e dura, e rebrilha na sua satisfação nédia de farsante.
Pensava à época que o que sobrava a Passos Coelho em tranquila determinação faltava em calculismo; e que os cortes na despesa pública, que foram por demais tímidos, bem escusavam de ter sido transversais aos funcionários, assim como a classe dos pensionistas e reformados poderia talvez ter sido deixada em paz. Mais valia ter encerrado serviços inúteis, por grande que fosse o berreiro, porque o eleitor médio, que não é exactamente uma águia, pode entender, se lhe explicarem, que o serviço tal não serve para nada, mas jamais aceitará que a ele lhe cortem um xis do magro rendimento enquanto há ricos que se repoltreiam no consumo do supérfluo. Uma triste realidade que a esquerda explora e que prestigiados economistas, com a típica incapacidade da classe para entender os mecanismos da criação de riqueza, alimentam com a interminável treta dos progressos na igualdade.
Vítor Gaspar, o do brutal aumento dos impostos (que o demagogo Centeno viria a diminuir de paleio e engordar na realidade), nem nisso acertou: deixou a taxa máxima do IVA em paz quando o consumidor, na realidade, estava maduro, à época, para, à boleia da troika, engolir sem pestanejar a punção que, por incidir no consumo e não no rendimento, é menos visível.
Um erro de casting, esse Vítor, e o verdadeiro responsável pela vitória coxa nas eleições. Nunca apreciei a peça, embora achasse imensamente gratificante a forma serena como rebatia com suficiência as objurgatórias da canzoada oposicionista, e recordo-me de me perguntar quanto daquilo era escolha própria e quanto exigência dos alvazis que a troika para cá despachou.
Enfim, o que lá vai lá vai. Ou não vai: porque a luminária, em vez de gozar o sossego burocrático das altas funções internacionais onde se encaixou, vem dizer coisas. As coisas são um estendal de asneiras convencionais, tão ostensivas que fui conferir, não fosse o jornalista, como é típico da classe, ter treslido.
É um post em que se defende, a propósito da Covid, uma “acção colectiva” para fomentar o acesso a vacinas, garantir financiamento crítico e acelerar a transição para um mundo mais verde, digital e inclusivo. Este palavreado, só por si, é o mantra das agências internacionais, que traduzido costuma querer dizer mais poder, mais estudos, mais burocratas para debitar inanidades, mais malbaratamento de fundos públicos, mais corrupção e o costumeiro abismo entre as intenções proclamadas e as realizações. O bom do Guterres, especialista neste paleio de chacha, assinaria com gosto, logo que lhe secassem as calças encharcadas por uma das inundações que as alterações climáticas provocam e que não teriam lugar se alguém prestasse atenção aos seus lancinantes apelos.
Aqui, porém, no fim, listam-se medidas que têm a ver com a difusão de vacinas no que dantes se chamava o terceiro mundo (é o que já está há umas décadas para se desenvolver e que entretanto se dividiu em países em vias disto e em vias daquilo) e nada vejo, pelo contrário, de criticável, mesmo que uma parte seja praticamente ininteligível para quem, como eu e quase toda a gente, não domina o jargão burocrático que esta gente desenvolveu para não ser compreendida.
Podia Gaspar e a chefe que co-assina, uma tal Gita Gopinath, manter a análise sumária dos níveis de endividamento por grupos de países, relatar o que o FMI tem feito para ajudar durante a crise Covid (que é atribuída em exclusivo à doença e não às decisões governamentais para lidar com ela) e passar às medidas, que aliás ganhavam com maior detalhe. Mas não: a este funcionalismo apátrida a inimputabilidade sobe à cabeça e, invariavelmente, julga-se autorizado a ministrar conselhos que excedem em muito os propósitos do organismo em que presta serviço.
O jornalista do Jornal Económico traduziu bem e sigo-lhe o resumo: “Os governos mundiais devem procurar melhorar a eficiência, simplificar os códigos fiscais, reduzir a evasão fiscal e aumentar a progressividade.”
Ó pobres diabos, donde vos vem a autoridade para informar os governos do que “devem” fazer? Melhorar a eficiência sem dúvida, ainda que ela não aumente pelo facto de uma dupla de funcionários dizer que isso é necessário; simplificar os códigos, bem, é uma óptima ideia, se bem que os legisladores que os fizeram complicados talvez não apreciem que lhes puxem as orelhas; e reduzir a evasão fiscal nem se discute, apenas se estranha que à força de a reduzir ela ainda não tenha acabado. Mas aumentar a progressividade?! Tenho novidades para vocês, ó duo revolucionário: a progressividade e o seu grau são ideias políticas muitíssimo discutíveis, objecto portanto de escolhas que os eleitores devem sufragar, em democracia, e os ditadores fazerem, em ditadura. Convém informar portanto os eleitores, no primeiro caso, e os ditadores, no segundo, que Vítor e Gita já decidiram a matéria, numa reunião depois do almoço em Washington, consultando os seus apontamentos.
“Aumentar a capacidade do Estado de recolher impostos e alavancar o papel do sector privado também será chave, defendem os economistas, advertindo que, enquanto a pandemia persistir, a política orçamental deve permanecer ágil e pronta às circunstâncias em constante evolução.”
Alavancar o papel do sector privado é uma chave clássica para o progresso nas sociedades modernas, não há que negar. Mas como isso quer com frequência dizer que a capacidade do Estado para extorquir recursos deve diminuir, e não aumentar, Vitó e Gitinha devem ter achado que o post estava com parágrafos a menos, pelo que lhe incluíram este, enigmático.
“… os países terão de ver como podem mobilizar recursos domésticos e aumentar a qualidade dos gastos, podendo, por exemplo, fortalecer os sistemas de impostos para aumentar receita.”
Aumentar a qualidade dos gastos pelo expediente de cobrar mais impostos é uma ideia digna de figurar no átrio de todos os Paços do Concelho do nosso país, para habilitar as edilidades a, com a consciência em paz, aumentar o IMI e reforçar o seu plano de construção de ciclovias e pavilhões multiusos, dois importantes factores no progresso das comunidades locais. Já no país, desde a famosa paixão pela educação com que Guterres se distinguiu, e que nos habilitou a exportar arquitectos para o Dubai, enfermeiros para o Reino Unido, engenheiros para a Alemanha e restantes licenciados para call centers, o Estado não tem cessado de dar exemplos de qualidade nos gastos. Tudo leva a crer que tivesse o PRR uma maior componente de fundos perdidos e construir-se-ia um novo Convento de Mafra, desta vez sob a designação Palácio dos Congressos Fortemente Progressistas, devidamente descarbonizado.
“No âmbito fiscal, ambos saudaram o histórico acordo internacional sobre a taxação de empresas, apoiado por mais de 130 países, considerando que vai parar a corrida para baixo na diminuição de taxas utilizadas como fator de concorrência entre países.”
No acordo referido não está previsto que as receitas geradas pelos aumentos de IRC sirvam para aliviar outros impostos, nem que as empresas que, por serem multinacionais, pagam taxas muito baixas, deixem de repercutir os aumentos nos seus clientes, o que tudo significa o mesmo, isto é, mais Estado e menos indivíduo. Mas como a exequibilidade desta governança além-países é mais do que duvidosa, pode o resultado prático ser apenas a desejada machadada na competição fiscal, ao menos dentro da União. A qual competição, se nunca tivesse existido, teria dificultado que um país como a Irlanda nos tivesse ultrapassado a cem à hora e outros mais devagar. Vítor Gaspar dá aqui provas não se sabe bem do quê – talvez seja patriotismo.
Há mais, mas é sempre o mesmo discurso asneirático, não vale a pena comentar. Disse acima que nunca apreciei Vítor Gaspar, mas dei-lhe o desconto do estado de necessidade: não havia tempo para pensar, era preciso agir.
Erro meu: nele, pensar é excessivamente parecido com não o fazer.