Gostava que nos pudesse ajudar a explicar como era antes do 25 de Abril. O que não se podia fazer. Por exemplo, usar mini-saia…!” — Não era a primeira vez e não foi a última que este tipo de pedido me foi feito. E não era a primeira nem será certamente a última vez que me interrogo: esta gente não vê as fotos dos jornais da época? As imagens de arquivo RTP que estão disponíveis online?

Os inúmeros artigos que por estes dias tentam celebrar o 25 de Abril procuram naturalmente explicar como era o país em que o golpe militar aconteceu. O que não é natural é esta espécie de “fantasiologia” de Abril instalada em boa parte do que por aí se diz e escreve: ora não se podia usar mini-saia como afirmava a jornalista que me pedia ajuda para um artigo. Ora não se podia viajar. Ora não se podia adoecer

Mas vendo bem é natural que este patetismo esteja por aí a campear. A razão é óbvia: todos esperávamos estar melhor 50 anos depois do 25 de Abril. E, acrescente-se, também depois de milhares de milhões de apoios europeus. Mas a verdade é que 50 anos depois do 25 de Abril o país continua atrasado e a perder os mais audazes para a emigração (com a diferença que agora emigram os filhos qualificados da classe média e não, como acontecia há 50 anos, os jovens semi-analfabetos das aldeias do norte e centro).

Nestes 50 anos Portugal faliu três vezes e nos últimos anos começou a assistir a algo ainda mais inquietante: a falência do estado social e o declínio de instituições, como a escola pública, que asseguravam o elevador social. O falhanço do presente encontra assim na simplicação do passado não já uma desculpa (50 anos são muito tempo!) mas pelo menos um refrigério, como se o mal do passado não explicasse mas pelo menos desvalorizasse os problemas do presente por hediondo contraponto.

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Contudo o mais inquietante nesta transformação dos 50 anos do 25 de Abril numa espécie de performance escolar é vermos como, ao mesmo tempo que se propagam fantasias sobre o que “antes do do 25 de Abril não se podia”, se tenta legitimar que o poder político volte a poder o que então podia. Por exemplo, voltar a controlar o ministério público. Sim, o regime deposto a 25 de Abril era uma ditadura e funcionava como tal.  Ora é precisamente esse funcionamento ou alguns aspectos dele que 50 anos depois está a ser banalizado.  Sim, 50 anos depois do 25 de Abril estamos a discutir se se deve ou não colocar o ministério público na ordem. Ou se, como sugere Ferro Rodrigues, o Presidente da República deve “Demitir a PGR ou sugerir que se demita”

Pode dizer-se que o desempenho atrabiliário de Lucília Gago justifica esta tentativa de controlo do ministério público pelo poder político. Mas não só não justificaria a demissão da PGR (outra coisa é serem dadas explicações) como a mesma intenção de controlo do ministério público já foi verbalizada quando na PGR estava Souto Moura e no país rebentava o escândalo Casa Pia. E foi também precisamente essa intenção que levou Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, em 2019, a não reconduzirem Joana Marques Vidal. O poder político e mediático desfazia-se em elogios à então Procuradora, mas depois da Operação Marquês a visar José Sócrates, das investigações aos vistos gold, ao BES/GES e aos incêndios de Pedrógão, o estado de graça de Joana Marques Vidal acabou quando a Operação Fizz, que envolvia Manuel Vicente, se tornou num escolho entre Lisboa e Luanda. Belém e São Bento, que é como quem diz Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, numa das decisões mais lamentáveis dos seus mandatos, afastaram Joana Marques Vidal e substituíram-na por Lucília Gago. O que agora está a acontecer com o ministério público não decorre da falta de controlo por parte do poder político mas precisamente porque este o quis controlar.

50 anos depois do 25 de Abril ao clássico “Não podias” devemos acrescentar “O que podia o poder político”. Quem sabe assim se percebe melhor aquele tempo e também este.