O Livro Esperado. A crise que enfrentamos. A nossa posição no mundo. As nossas contradições. Os fundamentos de uma estratégia nacional. Uma hipótese de estruturação política da nação. Peça na sua livraria ou directamente à Editora Arcádia, Apartado 21, Damaia.”

Era assim que em 1974, se publicitava Portugal e o Futuro, o livro assinado pelo recém-nomeado vice-chefe do estado-maior das Forças Armadas, António de Spínola, entre o anúncio da construção da primeira central nuclear portuguesa e a revelação de que Jackie Stewart, campeão mundial de condutores, estava em Portugal para, numa acção promocional da Ford, dar aulas de condução.

Jornais como o Expresso, o Diário Popular e República… vão publicar excertos do livro de Spínola. Uma frase nele inscrita faz títulos: “A vitória exclusivamente militar é inviável”. Muitos daqueles que compraram Portugal e o Futuro não o leram na sua totalidade (até porque a prosa não é fluida) mas certamente que quase todos procuraram as páginas onde se lia: “resta apenas uma via para a solução do conflito e essa é eminentemente política, a vitória exclusivamente militar é inviável” ou “não é pela força nem pela proclamação unilateral de uma verdade que conseguiremos conservar portugueses os nossos territórios ultramarinos. Por essa via, apenas caminharemos para a desintegração do todo nacional pela amputação violenta e sucessiva das suas parcelas, sem que dessas ruínas resulte sobre que construir o futuro.

Portugal e o Futuro rapidamente atingiu as seis edições. Torna-se um enorme sucesso editorial e um caso político incontornável. O que nos obriga a perguntar: porquê? Certamente que a popularidade granjeada por Spínola enquanto Governador-Geral e Comandante-Chefe da Guiné contribuíam para tal mas não servem como explicação. Afinal muito daquilo que estava escrito em Portugal e o Futuro já tinha sido antecipado doze anos antes por alguém de dentro do regime, Manuel José Homem de Mello, num livro curiosamente intitulado Portugal, o Ultramar e o Futuro.

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Depois, nada do que Spínola expõe em 1974 era propriamente uma novidade. Em Portugal e o Futuro não só se encontram transcritos e adaptados documentos que Spínola partilhara antes, nomeadamente com Marcelo Caetano, como várias daquelas teses tinham sido abundantemente divulgadas por Spínola nas várias entrevistas que dava.

Mais do que pelo seu conteúdo, Portugal e o Futuro funcionou como um sinal de que os militares estavam prontos para avançar e fazerem o que se esperava deles: um golpe. Os militares tinham-se tornado no elemento chave da mudança do regime: a via eleitoral falhara em 1969, quando o fraco resultado dos socialistas da CEUD – Comissão Eleitoral de Unidade Democrática levou Marcelo Caetano a acreditar que não havia outros interlocutores além dos comunistas e logo a cortar com a abertura do regime. O diálogo com a Igreja falhara desde os incidentes da Capela do Rato em 1973. A Ala Liberal chefiada por Sá Carneiro trocara o parlamento pelo Expresso e a via presidencial falhara quando Américo Tomás se recandidatou em 1972 e inviabilizou uma candidatura do próprio Spínola.

De cada vez que Marcelo Caetano perdia interlocutores para o desbloqueamento do regime a solução militar ganhava peso. O que Spínola veio mostrar com o seu livro é que militares prestigiados, de alta patente e que conheciam o Ultramar, como era o caso dele mesmo, Spínola, estavam disponíveis para estar nessa solução. A partir da saída de Portugal e o Futuro todos sabem que os militares vão fazer o que se espera deles. É apenas uma questão de tempo.

O livro vale portanto não tanto pelo que diz mas sim pelo momento em que diz. E é aqui, neste encontro entre uma mensagem e o seu tempo, que Portugal e o Futuro se torna subitamente actual: o que é preciso para que esse encontro aconteça?

Em 2024, já não se pedem livros para apartados e valha a verdade boa parte das revelações impactantes já não chegam pelos livros. Mas se nos despojarmos dos artefactos do momento deparamos com a mesma atmosfera de um país bloqueado e com a mesma sensação de que os protagonistas estão reféns de um presente que sabem insustentável mas que não podem desmontar sob risco de perderem a face. É como se todos esperassem pelo momento em que algo ou alguém faça o gesto que sabem incontornável e em que aquilo que eram sinais de mal estar se tornam factos urgentemente incontornáveis. Um dia – qual? – serão interpretadas como um falhanço do regime (tal como o bloqueio em torno do Ultramar o foi em relação ao regime anterior) notícias como a divulgada esta semana pelo Expresso que dá conta de que “Mais de 850 mil jovens que têm hoje entre 15 e 39 anos deixaram o país e residem atualmente no exterior, segundo uma estimativa do Observatório da Emigração. Quase um terço das mulheres em idade fértil está fora. Êxodo tem um “impacto brutal” na fecundidade e no mercado de trabalho, alertam especialistas“.

Mas, e esta é de facto a questão central, como vai Portugal resolver este seu novo bloqueio? No passado ditatorial os militares cumpriam esse papel. Na democracia as falências não mudaram a demagogia do discurso político que as gerou mas pelo menos corrigiram alguns procedimentos. Mas agora os militares já não fazem golpes, o risco de falência está afastado com as novas regras europeias e as contas certas, à custa das cativações e duma brutal carga fiscal, permitem que se façam cortes sem que se diga que se fazem cortes. Mas não só. O país mudou também porque está mais velho e mais dependente do estado, logo mais interessado em manter o presente mesmo que à custa do futuro do que em desfazer bloqueios. Como alertava Vítor Bento aqui no Observador, a 11 de Janeiro: “Reformar é preciso (mas é possível?) O eleitorado envelheceu consideravelmente. Problema: a população com mais idade preocupa-se mais com a sua reforma do que com as reformas do país. (…) Actualmente, 55% do eleitorado tem mais de 50 anos (eram 39% há 40 anos) (…) mais de 60% dos potenciais eleitores actuais passaram a ter o seu rendimento directamente dependente do Estado, seja este o fornecedor directo do mesmo (cerca de 50%), seja o decisor do rendimento fornecido pelo sector produtivo (cerca de 10% recebem salário mínimo, fixado pelo Estado).

50 anos depois da saída de Portugal e o Futuro um presente bloqueado volta a sequestrar-nos o futuro. Não tinha de ser assim. E como pode deixar de ser assim?