(Segunda parte do artigo Fazer chegar liquidez à economia a custo zero, parte I: um modelo regulatório para isso)
Como fixar de forma fundamentada o preço dos empréstimos em ‘zero’?
Mario Draghi diz que o preço deve ser zero. O que é o zero? Ou, o que não é zero?
Vejamos. Para regular um preço de serviço público, o instrumento de política regulatória é a orientação do preço para os custos. O custo incorpora também o custo de capital, a remuneração da empresa.
Os modelos de contabilidade analítica que podem estar subjacentes à orientação para os custos podem ser extraordinariamente complexos. Para aqui, e no quadro de urgência em que estamos, que não permite passar longos meses a discutir modelos de custeio, será suficiente recorrer a um par de princípios básicos. Além do que, na falta de um modelo de custeio elaborado e previamente fixado em lei, é normal recorrer-se ao benchmarking, às análises comparadas.
Separação contabilística
Uma regra elementar e que deve ficar assente de antemão é a da contabilidade separada, aqui significando que o volume de empréstimos feitos com os fundos do BCE a taxas negativas por 3 anos e a garantia pública no âmbito deste específico programa de ajuda têm de ser autonomizados contabilisticamente, quer para efeitos de reporte e certificação de informação para fiscalização do cumprimento das condições de elegibilidade, quer para própria protecção dos bancos, no cálculo de ratios de performance, de solvabilidade, liquidez, risco, e no relaxamento de exigências prudenciais que legitimamente os bancos devem obter, mas sabendo-se exactamente o peso relativo dos empréstimos suportados no plano de ajuda no balanço dos bancos.
Proxy ao custo zero: o custo de financiamento e o spread pré-COVID
Utilizemos o exemplo de um banco que tenha um spread histórico recente no mercado pré-COVID de 1,25% e que comunica ao mercado ter um custo normal de financiamento de 0,43%, por hipótese. Sabemos que esse banco, em condições normais de mercado pré-pandemia e extra-programa do BCE, com um spread de 1,25%, paga o custo do financiamento e retira margem bruta de lucro de 0,82%.
Ora, se para um determinado volume de financiamento, o seu custo baixar de 0,43% para -0,75%, basta-lhe praticar ao cliente final uma taxa de juro de 0,07% para manter pelo menos o mesmo nível de remuneração da actividade. Não contando que neste empréstimo tem um risco substancialmente reduzido, pois o Estado é garante. Ou seja, à luz do histórico deste banco, a sua margem de lucro, bem acima até dos custos, já está assegurada com um spread de 0,07%. Ou não?
Se este banco a operar em Portugal negociar com o Governo a cobrança de um spread de 1% a 1,5% sobre os fundos obtidos por -0,75% e ainda garantidos pelo Estado, estará a fazer um grande negócio de forma quiçá ultrajante para a dignidade do povo português.
Porque é que a comissão de gestão não é, por definição, computável no preço orientado ao custo?
A comissão de gestão não é, por definição, um preço orientado ao custo porque é fixado em percentagem do valor mutuado e não do custo da hora-homem ou do espaço de memória ocupado em sistemas, por exemplo, ou de alguma imputação nos custos gerais de funcionamento. Portanto, a ser devido algum preço pelo custo de processamento do empréstimo, o seu valor seria fixo e marginal. Mesmo neste caso, dificilmente se concebe a sua justificação. Senão veja-se.
Dado que os bancos estarão a usar a capacidade instalada e dado que se prevê que a transferência dos fundos do BCE seja incremental ao negócio, a menos que se demonstre que foi necessário contratar pessoas ou adquirir equipamento adicional, por exemplo, não estará justificada a cobrança de nenhum custo marginal de gestão.
Portanto, não será sustentável a cobrança de nenhum valor a título de comissão de gestão, nem em percentagem nem em valor fixo, salvo se e na medida em que se demonstre por contabilidade analítica a certificar por auditoria independente um custo operacional incremental efectivo e imputável ao segmento de empréstimos do plano de ajuda e que excede o subsídio à taxa de juro.
Por que razão deve ser afastado o argumento de que os bancos têm um custo de oportunidade de investir noutros activos que remuneram a 2%
Há um argumento avançado segundo o qual os bancos sairiam prejudicados pela não cobrança de juros nos empréstimos financiados pelo programa COVID do BCE a -0,75% pois estariam a perder a oportunidade de investir noutros bancos que estão a remunerar a mais de 2%.
Naturalmente que os 3 triliões que o BCE disponibiliza para socorro à economia não se destinam a ser investidos em depósitos no UBS, Crédit Suisse, Rabobank, Bank of America, JP Morgan. Parece justificar-se que o Governo clarifique e estabeleça critérios de elegibilidade para o acesso continuado aos fundos do BCE que afastem esta possibilidade.
E o custo de 1% da garantia do Estado?
O Governo deve fazer a sua parte e ir mais longe na colaterização. Há um equilíbrio delicado a atingir entre garantir empréstimos a baixo ou custo zero pelos Estados e a qualidade da sua dívida pública, é certo. Mas para reduzir o custo de 1%, a abordagem do esforço do Estado pode ser dinâmica: no momento actual o Governo pode ir mais longe apoiando mais as Sociedades de Garantia Mútua para baixarem o juro de 1% para valores próximos de zero, e gerir, numa janela temporal a dois anos, por hipótese, o incremento do valor desse juro.
Importa notar, como num artigo ao Observador Eduardo Catroga e Jorge Luís Barros, Eurobonds. Ser ou não ser?, que a emissão de dívida pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade encerra, em si mesmo, uma mutualização da dívida. Importa também notar que o plano do BCE inclui uma compra massiva de dívida.
Em conclusão, impõe-se fazer chegar a liquidez a custo zero à economia através de serviço público em que a CGD tem o papel de garante mínimo do exercício dessa função; consagrar um regime aberto a todo o mercado, condicionado à satisfação dos requisitos de elegibilidade a todo o tempo; fixação de spreads orientados aos custos, à luz, designadamente, dos valores históricos pré-COVID, eliminar a comissão de gestão e reforçar o apoio do Estado à redução da taxa de juro das SGM, a avaliar à luz da evolução da qualidade da dívida em articulação com os mecanismos da UE de protecção do risco da dívida soberana de Portugal.
Este é um modelo objectivo, gerador de segurança e capacidade de decisão em que a Banca exerça realmente a sua função de intermediária financeira do plano de ajuda com espírito, estatuto e regras de serviço público, usando os fundos do BCE e a colaterização do Estado para não sair prejudicada na sua obrigação de transferência de liquidez para a economia, mas aproximando o náufrago da bóia de salvação.