Recuperando a ameaça que Trump lançou à Coreia do Norte há uns anos, este mês marca o início da próxima (e decisiva) fase da campanha presidencial nos Estados Unidos e a administração americana parece decidida a lançar fogo e fúria sobre o “vírus chinês” e a ameaça global que o mesmo representa.
Depois de, no Domingo, ter dito que os EUA não deverão chegar aos 100 mil mortos por Covid-19 (será?) e que pode haver uma vacina até ao final do ano, Donald Trump relançou esta segunda-feira a campanha Keep America Great (alguma vez parou?) com dois vídeos arrasadores – desde logo, do ponto de vista cinematográfico – e que se arriscam a ficar para a história dos manuais de propaganda (o que não implica um juízo sobre o mérito da atuação de Trump ou falta dele – isso fica para outra oportunidade).
O primeiro é um anúncio publicitário oficial da campanha, partilhado pelo próprio Trump, e o segundo é um vídeo produzido pela thebradfordfile, partilhado pelo diretor de comunicação da Casa Branca, Dan Scavino.
Antes de uma análise ao conteúdo dos vídeos propriamente ditos, destacaria isto:
Trump acaba de desenhar e lançar o dicionário político de muitas das campanhas dos próximos tempos pelo mundo fora. Expressões como regresso, reconstruir, restaurar, redescobrir, juntos, unidos, lealdade, solidariedade, esforço nacional, luta, coração, espírito, começar a crescer, começar a vencer novamente passarão a fazer parte do léxico político. É bom que nos vamos habituando a elas.
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) May 4, 2020
O cenário é de guerra, de combate, de catástrofe.
O inimigo: o vírus, que Trump chama de inimigo invisível, mas não só (porque, para Trump, o vírus não se espalhou sozinho) – também há um inimigo externo (a China) e os inimigos internos (os democratas e os jornalistas).
As vítimas: em primeiro lugar Trump – ridicularizado, atacado, tentaram impedi-lo de atuar e o inevitável “ysterical xenophobia” de Joe Biden (quando criticou o fecho das fronteiras à China e que Trump usava diariamente como um dos principais argumentos para o sucesso da resposta norte-americana ao vírus); e só depois os americanos – a população ameaçada e a referência aos primeiros cenários que estimavam cerca de 2 milhões de mortos.
A resposta: é Trump – é ele quem protege os cidadãos americanos, quem luta por eles, quem construiu e recuperará a melhor economia do mundo; para reforçar essa ideia temos o “fenomenal accomplishment” de Cuomo e o “promise made, promise kept” de Gavin Newsom.
O resultado: a vitória, proclamada por Trump – nós venceremos esta guerra, America Great Again!
É, portanto, a perspetiva do Presidente de dois meses de briefings diários resumida num longuíssimo minuto.
— Dan Scavino (@DanScavino) May 2, 2020
Neste segundo vídeo, Trump relança o guião para os partidos anti-sistema: nós, os bons e o povo versus eles, a elite poderosa e corrupta. Mas, mais interessante que isso, recupera e reforça o discurso protecionista, desta vez explorando o sentimento (inculcado?) anti-China que muitos americanos – e, arrisco dizer, boa parte do Ocidente – sentem na turbulência da pandemia.
Diz Trump (tradução livre): “Durante muito tempo, um pequeno grupo na capital do nosso país colheu os frutos do exercício do poder enquanto o povo suportou o custo. Os homens e as mulheres esquecidos do nosso país não continuarão a ser esquecidos. O que realmente importa não é que partido controla o nosso governo, mas se o nosso governo é controlado pelo povo. Todas as decisões sobre comércio, sobre impostos, sobre imigração e sobre negócios estrangeiros serão tomadas em benefício dos trabalhadores americanos e das famílias americanas. Temos de proteger as nossas fronteiras contra a devastação provocada por outros países, que fabricam os nossos produtos, roubam as nossas empresas e destroem os nossos empregos”. E remata: “A América vai recomeçar a vencer, a vencer como nunca antes! E a base da nossa política será uma fidelidade total aos Estados Unidos da América. We will get the job done!”
É a construção de uma retórica interna, mas com os olhos postos lá fora, como que em jeito de aviso. O alvo? A China, naturalmente. Em termos geopolíticos, é uma forte reação da administração norte-americana.
E isso é sinal de que estes dois meses a campanha não esteve parada. Esteve a analisar, a processar, a recentrar, a reajustar e… a criar. E fê-lo enquanto o Presidente se prestou ao circo dos briefings diários (será que voltam?) para entreter os jornais e poder construir a sua narrativa, a qual tem como pano de fundo a tensão premente com a China. É esse o cenário onde se desenrola a trama de ambos os filmes.
Repare-se que, ao mesmo tempo em que estes anúncios eram lançados, Mike Pompeo, secretário de estado e chefe da diplomacia norte-americana, veio confirmar o que Trump já antecipara quanto à existência de provas que demonstram que o vírus teve origem num laboratório de Wuhan, na China, e Keith Krach, secretário-adjunto para o Crescimento Económico, Energia e Ambiente, anunciou que os Estados Unidos estão já a estudar a aplicação de sanções (possivelmente, novas taxas alfandegárias) para reduzir a dependência americana das cadeias de fornecimento chinesas.
Por fim, de salientar o seguinte: não há, em nenhum dos vídeos, uma única referência aos americanos que perderam a vida com Covid-19 nem aos momentos mais peculiares que marcaram os briefings Trump (até terminarem abruptamente com a sugestão de que as pessoas injetassem desinfetante). Por outro lado, as referências ao partido democrata não são particularmente agressivas. Lealdade e união são alguns dos apelos que fazem parte deste retomar de campanha.
O choque da pandemia foi duro. O foco agora é outro. Importa sobretudo gerir o impacto da presente situação e o resultado da resposta à crise. A reabertura económica e o “desconfinamento” serão elementos chave. Há muitas vidas americanas em jogo. E o Presidente sabe isso, a sua é uma delas.