Estão a passar, sem grande alarido e como é típico do que é importante, 150 anos da redação de uma das mais importantes obras da literatura universal: La Tentation de Saint Antoine de Gustave Flaubert (1821-1880). Título que em português talvez tivesse que ser “A Tentação de Santo Antão”. Deveras, tradicionalmente se transmutou o nome de Santo António (o de Flaubert e o pai arquétipo do movimento ascético eremítico cristão e dos ‘Padres do Deserto’) para Santo Antão, pois, para o povo português e outras pessoas de idioma luso, Santo António (só quase) é o de Lisboa.

Não sou especialista na arte literária e nem sequer posso colocar no meu CV que frequentei o estudo da mesma numa Universidade qualquer. Tampouco sou especialista em arte pictórica, nunca tendo ido ao CCB. Mas, como teólogo, movo-me com alguma facilidade por esses dois mundos, que tanto nos aproximam do Transcendente. Mas isto somente quando os artistas se apagam de si (conforme já evoquei noutra ocasião neste órgão informativo) e permitem que Deus Se expresse por essas pessoas quando as mesmas são boas, no sentido espiritual deste termo – e isto independentemente do tipo de criação final daí resultante ser mais, menos ou nada religiosa ou piedosa.

Para falar-se de La Tentation de Saint Antoine (no singular), as duas artes anteriormente referidas são imprescindíveis. E são-no, seja por a mesma ser uma obra literária, seja por ter sido inspirada por um quadro que Flaubert viu em Génova em 1845 no Palazzo Balbi. Uma pintura a óleo, com título de De verleidingen van Sint-Antonius de Abt (no plural), dos inícios de quinhentos e de atribuição controversa (de Pieter Brueghel a, desde 2018, Jan Verbeeck).
Uma pintura claramente na linha de tantas outras vindas dos Países-Baixos sobre este tema, sendo que a contemplada pelo autor de Rouen, toca-nos com: a beleza da natureza menos ciente; as jovens bonitas, sorridentes e provocantes (que estão ao lado de Antão); os monstros singulares; as criaturas extravagantes e fantásticas que são o resultado do cruzamento de vários animais; e, para mim e numa súmula de recordações de uma pessoa que me suscita inveja, um homem a cavalo num barril. E tudo isto num enxame pandemónico que tanto atrai quanto repulsa.

Já o apontei há momentos desde outra vertente, mas é preciso insistir. Quando diante de uma obra de arte diáfana à Luz que nos permite ver a luminosidade (uma pintura, uma composição musical, uma estátua, porventura até um filme, etc.), começamos a estar progressivamente livres do nosso ‘ser zero’, entramos no silêncio onde tem origem toda a Presença que nos esvai no nosso ‘ego’. Eis-nos, desta forma, pendurados n’Aquele a Quem respiramos e de Quem recebemos toda a alegria.

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Deixando de gravitar ao redor de nós mesmos (algo que se apoia na certeza de que existe Alguém a Quem possamos dar tal ‘ego’ e oferecermos o nosso ‘eu’ em generosidade), encontramos um Outro que cumula esse ‘eu’ de Si e suscita a mencionada generosidade que é Ele mesmo. Eis o que aprofunda a nossa autenticidade numa espécie de novo nascimento em que as luzes assim recebidas da Luz iluminam as sombras do nosso ser.

Não me é difícil de ver Flaubert (esse asceta das palavras subtis, sedosas e delicadas que da moral hipócrita pouco se terá preocupado) a contemplar De verleidingen van Sint-Antonius de Abt e iniciar uma viagem: aos seus demónios; às suas tentações, de um lado, interiores e psicológicas, e, do outro, exteriores de um séc. XIX francês cheio de violência política, renascimentos religiosos, grandezas humanas e miasmas culturais.

Vinte anos tardou Flaubert a publicar a versão definitiva, sem direção explícita e solitariamente vazia de sentimentos, de La Tentation de Saint Antoine. Vinte anos em que precisou, ele mesmo e se calhar sem saber do que se tratavam, de confrontar os seus ‘logismoi’; isto é, o ser atravessado, uma e outra vez, por ciclos mais ou menos completos de ‘visualização’, ‘interação’, ‘assentimento’, ‘cativeiro’ e ‘vício’. Naquela obra estão as próprias tentações de Flaubert, a ponto de, parafraseando-se uma expressão apócrifa sobre a personagem central de uma outra mais famosa obra sua, se poder dizer que “Antão é Flaubert” saído da sua casa secreta.

Também não me é difícil de conceber que, ante a já diversas vezes referida obra de Jan Verbeeck, a imaginação de Flaubert, quando este se viu a ver-se a si mesmo, a tê-lo seduzido sonambulamente a ripostar com todas as suas forças ante ‘a’ sua tentação (no singular: o egoísmo cheio de húbris putrefacta). Mas isso foi um erro que, se ele o cometeu, jamais o vemos ostensivamente presente na La Tentation de Saint Antoine.

Que vida terá experienciado este escritor francês para descobrir que o ripostar aos pensamentos que podem levar à tentação (patente tão maravilhosamente na pintura por si vista em Génova quão ma sua obra e na sua e nossa vida) não funciona. É necessário evocar ajuda Àquela generosidade que, indiretamente, nos abriu inapelavelmente à advertência face a estes nossos ‘antagnônismós’ provindos do ‘ego’: «Ó Deus, escuta-me e envia-me a Tua ajuda! Senhor, não demores em ajudar-me!» (Sal. 70,2). Mais: e, no e com amor, responder através do uso de ‘antirrhêtikoi’ apropriados e associados a Jesus e, concomitantemente, alinhados à ‘Theoria’ ante Este na Cruz.

Para escrever La Tentation de Saint Antoine, genuíno poema dramático em prosa, Flaubert teve que muito lutar contra os ditos ‘logismoi’. E se é dos pecadores que, de facto, Deus-Amor mais está perto, então eu, lendo aquela obra, tenho poucas reservas em achar que o mesmo muito subiu na escala da santidade. Combatendo as distrações tão lívidas como mundanas, que lhe impediam de, numa busca estética, encontrar a palavra exata para o que escrevia, este autor aproxima-se de tantos santos ascetas que terão vivido, noutras Tebaidas, o experienciado por si e que aponta os limites do conhecimento humano e leva ao se entregar à presença atmosférica da Presença.

Vejo Flaubert a colocar em paralelo a pintura por si admirada em Génova e as exposições pitorescas de manuais religiosos sobre as tentações, tentando encontrar, para a obra literária de que estou a falar, aquilo a que chamou de “ideias recebidas”. Quer dizer, clichés tão triviais que são deslumbrantes; que são tão paradoxais que só dando a volta aos nossos processos mentais comuns vislumbramos neles uma verdade que brilha e choca por não a vermos.
E isto é assim com La Tentation de Saint Antoine face, seja às múltiplas heresias do séc. IV de Santo Antão e que reapareciam no romantismo francês de oitocentos vindas do Iluminismo gnóstico (sobretudo com Victor-Marie Hugo, de Vigny, Berlioz, etc.), seja, com os relativismos das ‘neuróticas’ fugas à realidade dos nossos dias: empréstimos bancários insustentáveis; inverter o ónus da responsabilidade em certos conflitos; viver inserido no mundo virtual; conceber orçamentos cinicamente repletos de cativações, etc.

Este trabalho de busca e de crítica do que eu, noutro contexto, denomino de “teologia da pastinha elástica” (o usar chiclete para unir fissuras na coerência do dogma atacado, desde os sequazes dos nominalistas, pelo humanismo antropocêntrico e o secularismo enquanto filosofia do naturalismo desnaturalizado, pois des-embebido do sobrenatural), merece-me um enorme respeito quando leio esta obra. Se, por exemplo, «fora da Igreja não há salvação» não significa o que é dito, talvez esteja na altura de não se dizer isso, quer por reverência a Deus-Amor, quer por deferência ao ser humano loucamente amado por Aquele.

Claro que o ser um teólogo não me permite ver este extraordinário e estranhíssimo texto flaubertiano de um modo ingénuo, obsessivo ou alucinatório (como se a ‘singular’ tentação fosse como o caricato suceder dos ‘plurais’ episódios que este texto nos presenteia para descrever o tormento espiritual de quem não é um «decoração embalsamada / De mediocridade, / traição, / suspeita, / doença» [Tannela Boni]).Já para isso nos advertia Jean-Luc Marion no ensaio “L’dole et l’icône”. Mas não duvido da luta, tão de Flaubert quão do seu Antão, por uma fé sem desejo, não enquanto sentimento do Espírito da Beleza, antes como num pretender que o ‘eros’ e a ‘ágape’ se opusessem. Como se o período noturno e o período diurno não formassem um só dia. Como se depois da Luz, que nos dá a ver tudo de dia e de noite, tudo voltasse a ser como antes.

Ao contrário do que encontro noutros peripatéticos autores que, no séc. XIX, trataram tão mal dos temas do mal e da danação, pois sem qualquer sentido de risco nos seus trabalhos (Baudelaire, Balzac, Rimbaud, etc.), sustento que Flaubert escreveu o que escreveu tendo atravessado o “inferno”, que naquele século passava pelo seu «apogeu e questionamento» [George Minois]. Tudo em La Tentation de Saint Antoine pode parecer saturante a ponto de se poder compará-lo ao arrancar das unhas sem anestesia. Mas isso é intencional. O seu “Antão é cada um de nós”. Não tenhamos dúvidas.

Nós que temos, entre o nosso interior e o nosso íntimo, ‘o que nos separa’ (sentido etimológico de “diabo”). Aquilo que cindindo o amor e fazendo este girar em volta do ‘eu’ ou do ‘ego’, consoante a direção que a nossa vontade lhe atribui: ‘teófila’ ou ‘deifuga’. Se ‘teófila’, não haverá meio de chegarmos ao Sepulcro sem passarmos pela Cruz; se ‘deifuga’, eis-nos a ser dado a faculdade de escaparmos dos aspetos acidentais da realidade, mas sem a possibilidade de acedermos a uma substância. Niilismo exponencial de um mundo distorcido.

Também encontro na obra de Flaubert, e de modo especial, o apontar dos motivos das nossas procuras. Por outras palavras: as razões das nossas ambições e assentimentos às nossas tentações. E – quem sabe… – se as encontrarmos, intuiremos o sentido mais amplo do gesto com que o Santo Antão, ajoelhado no canto inferior direito da pintura, se resguarda das tentações. A saber: a denúncia da espiritualidade ‘beige’ burguesa inapelavelmente inserida num devaneio de trapezistas. Trapezistas que já vamos sendo quase todos nós, em vidas que deixam o amargo da solidão no meio de multidões e o tédio no meio de azáfamas de entusiasmo.

Estou a terminar. Qual, e talvez como um, místico apofático, Flaubert parece querer apontar, com o repositório que é La Tentation de Saint Antoine, o terrível misturar: do materialismo determinista (já então a caminho do insensato cientismo); do darwinismo do avesso; e da superstição, do esoterismo e do sincretismo mais cruéis. Um misturar que nos ajuda a entender o mundo das distópicas sereias, dos falsos mitos e dos esteticismos vazios em que hoje nos encontramos como se numa alucinação.

Críamos que depois da Covid-19 nos tornaríamos mais solidários, empáticos, altruístas. Nada disso. Somos como as bestas horrendas e as pessoas com olhos sem cor na pintura que marcou Flaubert e o levou a escrever uma espécie de anti-Fausto, com um Antão débil e inatingível no mais fundo de si, mas que, por isso e só por isso, capaz de vislumbrar os ‘logoi’ do Logos incarnado na matéria mais ínfima.

Mas não me façam caso: sou um homem tentado com fragilidades evidentes, embora entre muitos homens com fraquezas que não são por eles assumidas nem deixadas ver, antes as projetando nos demais para sobreviverem como (supostos) ‘Übermenschen’ que fazem e desfazem vidas. Nietzsche chamava a isto de «grandeza moral» para «além do bem e do mal». Eu chamaria apenas ‘desamor’. Aquilo de que tantos de nós nos alimentamos e damos a alimentar. Flaubert sabia do que, com carne e sangue, escrevia.