Há umas semanas, foi divulgado um relatório independente encomendado pelas cúpulas do FMI, avaliando o seu papel nas intervenções recentes nos países da União Europeia. O relatório faz parte do processo de auto-avaliação do Fundo. É grande e é composto por vários documentos parcelares de suporte. Um deles é totalmente dedicado à crise portuguesa e é a principal base das conclusões que são retiradas relativamente à intervenção em Portugal. Esse trabalho é da autoria de Martin Eichenbaum, Sérgio Rebelo e Carlos de Resende, reputadíssimos macroeconomistas.
Os vários documentos acusam a troika de ter errado no diagnóstico e, consequentemente, falhado no tratamento que aplicaram a Portugal. Claro que isto fragiliza a posição de quem aplicou as políticas troikianas com tanto empenho. Mas a verdade é que o relatório também não favorece a visão alternativa defendida pelo actual governo. Pelo contrário, se há conclusão a tirar é que a actual política económica contribui para exacerbar os desequilíbrios que já existiam antes do programa da troika e que motivaram a sua intervenção. Ou seja, este relatório deixa todos de orelhas a arder. Talvez seja por isso que dele se falou tão pouco.
De acordo com esta auto-avaliação, os grandes problemas de défice externo português não eram resultado de fraca competitividade portuguesa. Assim, as estratégias de desvalorização interna não eram adequadas. Aliás, os autores consideram que a redução dos custos de produção pouco contribuiu para o aumento das exportações portuguesas. Pelo contrário, argumentam que o crescimento das exportações pouco mais foi do que o retorno a uma tendência que já vinha de trás — ver a figura —, tese defendida há já alguns anos pelo actual ministro da Economia Caldeira Cabral. Um exemplo famoso deste tipo de políticas de desvalorização interna foi a tentativa abortada de desvalorização fiscal via TSU. Sobre esse assunto os relatórios são claros: “simulações feitas pela Comissão Europeia [com base num modelo computacional chamado QUEST] indicavam que as alterações propostas para a TSU não tinham qualquer efeito sobre a competitividade”.
Mas se os défices externos não foram gerados por falta de competitividade, quais foram então os motivos? De acordo com o relatório, o principal problema foi a baixa poupança, quer pública quer privada. Se a poupança gerada não é suficiente para financiar o investimento realizado, então o país tem défices externos. Para combatê-los teria sido necessário cortar a despesa do Estado, ter atenção à actividade bancária e, claro, encontrar formas de incentivar a poupança. Se isso tivesse sido feito entre 2000 e 2011, “Portugal estaria muito menos vulnerável à paragem súbita de fluxos de capital” que ocorreu em 2011. Ou seja, a tese de que Portugal estava no caminho certo e que apenas teve azar com a crise internacional é rejeitada neste documento.
A lição que daqui se retira para 2016 é que são muito preocupantes as notícias que dão conta de uma diminuição da poupança, acompanhada por um regresso aos défices externos, voltando aos desequilíbrios que tínhamos no período pré-troika. Vale a pena reforçar que o relatório não é um manifesto anti-austeritário. Aliás, considera a redução de despesa pública essencial para reduzir os défices externos. Simplesmente, dado o problema do baixo crescimento económico português, parece fazer pouco sentido que essa contenção seja feita à custa do investimento. Pelo contrário, o relatório refere explicitamente, entre outros exemplos, o problema do crescimento dos gastos com pensões.
No entanto, apesar de realçar a necessidade de contenção orçamental, critica bastante a estimativa do impacto dos cortes orçamentais. Quando o FMI calculou o impacto dos cortes na despesa pública, considerou um multiplicador de 0,5 (grosso modo, cada euro de redução na despesa levava a uma quebra do PIB de 50 cêntimos). Mais tarde, o FMI reviu esse valor para 0,8 e, de acordo com o relatório, o valor correcto seria mesmo ligeiramente superior a 1. Ou seja, cada euro de redução na despesa levou a uma quebra do PIB de cerca de 1 euro. Este valor coincide com o valor a que eu e os meus co-autores, Fernando Alexandre e Pedro Bação, chegámos no nosso livro “Crise e Castigo”, ou seja, são já dois estudos independentes a chegar a este resultado para o multiplicador.
Com as quebras do PIB superiores ao esperado, as metas orçamentais eram, na verdade, inatingíveis, tornando-se necessário tomar mais medidas impedindo assim o funcionamento dos estabilizadores automáticos. Na feliz expressão do autor de um dos documentos, George Kopits, era como se um cão andasse atrás da sua própria cauda; pescadinha de rabo na boca, se o relatório tivesse sido escrito em português. Com pressupostos mais realistas, seria de esperar que o programa da troika em Portugal fosse mais suave (com a contrapartida de ser mais longo). Daqui decorre, se bem que não esteja explícito no relatório, que, do estrito ponto de vista macroeconómico, algumas decisões do Tribunal Constitucional, as que impediram parte dos cortes previstos, facilitaram a estabilização da economia portuguesa.
O relatório também critica o montante de financiamento concedido a Portugal. As nossas necessidades de financiamento foram altamente subestimadas. O motivo é que não se teve em devida conta o endividamento público que tinha sido atirado para as PPPs e para o Sector Empresarial do Estado. Neste ponto, o relatório vem em socorro de algumas declarações passadas de José Rodrigues dos Santos.
Um assunto sempre polémico é o da reestruturação da dívida. Fica claro que o FMI defendia desde o início uma reestruturação da dívida pública, de forma a torná-la sustentável. Para os autores, os credores erraram quando nos emprestaram dinheiro a taxas de juro tão baixas e, portanto, também deveriam ser penalizados. É explicado que essa medida foi excluída por motivos políticos. A necessidade de que todos os países europeus, e seus eleitorados, concordassem com o programa de assistência tornou essa restrição incontornável. Naturalmente, estas conclusões agradarão a quem sempre defendeu a reestruturação da dívida. E, estranhamente, também agradarão a quem sempre disse que as reestruturações têm de ser feitas de forma discreta e sem grandes ondas.
Finalmente, e para terminar, não acreditem nem nas notícias nem nos colunistas que dizem que o relatório arrasa com a intervenção da troika em Portugal. Em relação à Grécia são bastante duros, mas, para o nosso país, o balanço global que faz é relativamente positivo, passo a citar:
- “Numa primeira vertente — se as metas do programa foram atingidas — os programas foram um considerável sucesso na Irlanda e, em menor grau, em Portugal.”
- “Numa segunda vertente — se os objectivos propostos foram atingidos — a Irlanda foi um sucesso inquestionável e Portugal um relativo sucesso.”
Em relação a este último ponto, deve-se referir que o relatório explica que “há boas razões para acreditar que tanto o programa do FMI como as acções do Banco Central Europeu ajudaram a que Portugal regressasse aos mercados internacionais; mas que é difícil quantificar qual a contribuição de um e de outro”.
Como se percebe, este relatório de auto-avaliação tem argumentos e críticas que podem ser aproveitados por quase todo o espectro político português. Mas há um barrete que serve a todos e de que poucos falam. É que se trata de um relatório de auto-avaliação. Se queremos que as políticas públicas melhorem é necessário que haja comissões independentes que as avaliem seriamente. Esta seria uma revolução se aplicada no nosso país. Que tenha dado conta, apenas Ricardo Reis, cujas palavras subscrevo, salientou isto:
“Não há quase nada nas políticas públicas em Portugal parecido com uma avaliação do IEO [Independent Evaluation Office]. Não é o FMI que é especial, mas antes Portugal que é invulgar na falta dos procedimentos de avaliação de programas públicos que são normais nos países da OCDE. Só na última década não avaliámos de forma séria os resultados das Novas Oportunidades, da nova lei do arrendamento, ou do mercado da energia e dos subsídios às renováveis, para dar alguns exemplos. Por isso, os debates sobre políticas públicas em Portugal primam pela falta de qualquer aprendizagem com o passado, que é inversamente proporcional à convicção exuberante que cada lado tem na eficácia das políticas que defende.”
PS. O título é um verso do FMI de José Mário Branco: