O título deste artigo é uma adaptação da máxima de Cipriano de Cartago, um teólogo do séc. III, segundo a qual, “fora da Igreja não há salvação”. O contexto: o encontro da passada sexta-feira, entre o Papa Francisco e humoristas no Vaticano. De facto, esse momento trouxe à luz algo fundamental: apesar de uma história nem sempre pacífica, Cristianismo e Comédia são fundamentalmente aparentados. Aliás, a melhor definição do Cristianismo será, mesmo, quando este é tido como Comédia do Mundo.

É certo que o Cristianismo parece estar do lado do sagrado e a Comédia do lado do profano – se estas categorias forem, ainda, totalmente operativas e úteis. Do mesmo modo que o Cristianismo se apresenta como solene, pomposo e proclamatório, ao passo que a Comédia aponta na desintegração do sentido, na perda de autocontrolo, e para aquilo que não deve ser dito. Em certo sentido, aliás, Comédia e Cristianismo parecem não só antagónicas, como cabalmente rivais. Mas depende do que estamos a falar.

Cristianismo e Comédia têm o seu método baseado no mesmo pressuposto: a razão é insuficiente. Ou seja, o mundo não é tão sólido, tão perfeito, ou tão ordenado como à partida parece. Está cheio de incongruências, sejam elas chamadas “pecados” ou “anedotas”. A questão é partir da ideia de que a existência é tão gloriosa, como falhada. Para o cómico, como para o crente, no cosmos existe uma espécie de fricção naquilo que é mais familiar ao ser humano; uma série de coisas avariadas, alheadas ou descamisadas. E é nesta tensão que, quer Cristianismo, quer Comédia, encontram – sem que isso seja evidente – motivos de celebração. Para os cristãos, a imperfeição é um motivo de celebração, na medida em que aponta para a necessidade do Criador. Para os cómicos, a insuficiência é uma oportunidade de celebração por demonstrar uma existência ainda em aberto.

E esta denúncia da incongruência, tão confundida hoje com ofensa ou discurso de ódio, é fundamental. Como escreveu Bakhtim, “degradar um objeto, não implica, (…) atirá-lo para o vazio da inexistência, (…) mas atirá-lo para o estrato mais baixo, que é reprodutivo (…) onde têm lugar a conceção e um novo nascimento”. Nisso, Comédia e Cristianismo têm uma mensagem semelhante: desce do pedestal e assume que és radicalmente humano: mais teimoso, mais incapaz, mais orgulhoso ou incompleto do que estarias à espera. No fundo, se alguém quer “subir na vida”, não deve apresentar o currículo dos seus talentos e qualidades, mas dos seus defeitos.

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Daí que a Comédia e o Cristianismo sejam muitas vezes confundidos com horizontes de arrogância ou superioridade – apesar de ser impossível negar que elas existam, mas aqui falamos de outra coisa. É, antes, o contrário: Cristianismo e Comédia não estão do alto a ver as coisas de forma sobranceira. Estão, ao invés, do lado do pelintra que puxa a corda à qual os seus irmãos estão agarrados, para os lembrar que também são tão mortais como os outros, e que isso é mais interessante que perturbador.

É certo que a imagem de Cristo é frequentemente vista como vertical, reta e cerimoniosa, mas quem se aproxima dos Evangelhos é radicalmente surpreendido. Jesus chama para o acompanhar homens com empregos precários, é acusado de embriaguez, de gula e de acessos de loucura, e entra em Jerusalém montado num burro, gozando com o poder imperial e satirizando o domínio religioso da época. Ou seja, o Messias parece comportar-se mais como um “malandro”, do que como um respeitável filósofo: está mais próximo do bobo, do que do estadista. Aliás, a revelação que Cristo traz é, tal como a anunciada no humor, uma antilógica. Basta pensar que ele é pouco dado a discursos, e mais a histórias que parecem trazer algo de anedótico dentro de si, e que estas estão cheias de recomendações como: oferecer a outra face, deixar as 99 ovelhas, para ir à procura de uma, ou perdoar os pecadores. No fundo, quer no Cristianismo, quer na Comédia, a fraqueza parece ser a única força duradoura, e a única capaz de criar uma irmandade universal.

Na verdade, a Comédia, tal como, por exemplo, a Política, não deixa de ser uma forma de dissimulação. Mas ao passo que a Política é uma forma de dissimulação que visa enganar os outros para obter e reforçar o poder, através de um raciocínio coerente, a Comédia é uma forma de dissimulação, conseguida através da imaginação, que se baseia na oposição ao pensamento convencional, e tem como objetivo – se este for, alguma vez, o termo certo – mostrar-se desapoderado. Como escreveu Ricardo Araújo Pereira – um dos convidados do Papa – ao passo que na Política “reinar” é ocupar um trono, na Comédia “reinar” é “reinar” como quando as crianças estão no jardim a “reinar”. E, de facto, esta distinção mostra bem como a proximidade à Comédia é um fiel da balança muito eficaz para mediar a proximidade efetiva do Cristianismo à sua origem. É na confusão entre “reinar” e “reinar” que o Cristianismo desenvolveu a sua história.

No fundo, não se trata tanto de saber se Deus ri ou não ri. Para o Cristianismo, sendo Deus totalmente Homem, e sendo o riso, como o concebemos, uma expressão exclusivamente humana, Deus “não tem outro remédio” senão rir, na mesma medida em que chora – muito embora as duas coisas não sejam necessariamente diferentes. A questão está mais numa dimensão de método de pensamento. E tal como na Comédia, no Cristianismo, a sabedoria é uma espécie de loucura e contar uma piada baseia-se no mesmo princípio de ociosidade que rezar.

Na verdade, apropriando-nos de um título de um ensaio de Agustina Bessa-Luís, quer Cristianismo, quer Comédia, são uma contemplação carinhosa da angústia, e o drama do primeiro, aconteceu, sempre, quando quis dar férias ao segundo.