Fui informado de que o dr. Louçã me nomeara em artigo no Expresso. De vez em quando acontece, e é útil por me permitir perceber que, após décadas de saudável fanatismo e franca intolerância, o dr. Louçã continua vivo. E activo. Decerto o jornal mantém a colaboração em nome do pluralismo, donde o dr. Louçã preenche a quota da extrema-esquerda “revolucionária”, que tanta falta faz no espectro das opiniões. Aliás, a quota está impecavelmente preenchida: no Expresso, que eu saiba, há mais um ou dois exemplares da seita (no Público são quase todos). Deve ser o mesmo princípio, a pluralidade, a garantir os lugares do dr. Louçã na Sic Notícias, no Conselho de Estado e, num passado recente, numa cátedra universitária e na administração do Banco de Portugal. Fico feliz. Apenas estranho que, em nome dessa abertura, as prestigiadas instituições em causa não convidem o “skinhead” Mário Machado ou um dirigente do Ergue-te. Injustiças.

Vamos lá então responder à referência com que o dr. Louçã me honrou. A resposta não é difícil, difícil foi a leitura. O dr. Louçã é forte a passear moralismo infundado e a condenar tudo o que lhe cheire a democracia, proezas que na televisão tempera com o que a minha amiga Margarida Bentes Penedo adequadamente chamou um “sorriso torto”. Infelizmente, é fraco a escrever. Das raras ocasiões em que os enfrento, constato, com um princípio de enxaqueca, que os textos do homem são uma traquitana de clichés recolhidos em cartazes de manifestações e panfletos de protesto. Não existe um parágrafo legível: existem, ligadas por rosnados, frases que um “okupa” usaria na t-shirt, no dia em que a do “Che” fosse enfim para lavar. O termo técnico é “miséria”, parcialmente resgatada pela comicidade involuntária do exercício. Por perversão, espreitemos o exercício.

A crónica em questão intitula-se “Chegaram os McCarthiminions”, trocadilho inspirado. O objectivo da crónica é fingir que condena a invasão da Ucrânia enquanto demonstra que as maiores vítimas dessa invasão são os leninistas portugueses como ele, fustigados por colunistas portugueses como eu, evidentemente ao serviço de forças tão tenebrosas quanto a NATO, os EUA, Israel e talvez São Marino.

Com a pujança lírica de um ou dois padres Fanhais, o dr. Louçã inicia o texto mediante sentença genérica e inatacável: “A crueldade da guerra é infinita”. Por azar, seis linhas decorridas já entram em campo os mitos que, ao contrário da Ucrânia, realmente importam à criatura: o “massacre de Sabra e Chatila”, os “ataques a Gaza”, o “bombardeamento de Bagdade”. Tudo equivalente, tudo comparável, com o pormenor de que o recurso à equivalência e à comparação prova o que de facto mobiliza o dr. Louçã. Uma pista: não é o sofrimento dos ucranianos. Faz sentido. Quem em 2021 riu do Holodomor não vai chorar em 2022 por uns milhares de mortos em Kiev ou Odessa. Adiante.

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Aos tropeções na Cimeira das Lajes, no Afeganistão e na eterna aversão à NATO, o dr. Louçã prossegue. Espantosamente, para quem sempre promoveu linchamentos sumários, prossegue benzinho, através da crítica ao ridículo “cancelamento” de artistas, atletas e demais profissionais russos a pretexto da invasão. O cuidado em localizar o precedente da purga no “macarthismo”, e não por exemplo no estalinismo, até poderia ser desculpado por tique nervoso. A chatice é que o tique é permanente. No fundo, conforme à natureza de uma carreira alimentada a falsidades, o dr. Louçã serve-se de uma injustiça autêntica, a que não liga nada, para inventar uma injustiça “similar”, que é a que lhe convém. No caso, utiliza os russos censurados para dissertar acerca dos mártires “vermelhos” que os portugueses desejam (?) censurar. Escusado dizer que o mártir maior é ele próprio. Se duvidam, perguntem-lhe.

Com assento cativo em inúmeros cadeirões, o dr. Louçã é um dos símbolos do regime, na acepção mais sombria e decadente do dito. Curiosamente, aquela cabecinha beata convenceu-se de que passa por “outsider”. Não passa. Andar 50 anos a repetir inanidades e a venerar criminosos não o transforma num dissidente do “sistema” que o abraça: quando muito, transforma o “sistema” que o abraça numa caricatura do que devia ser. Para o final da crónica, de modo a queixar-se, o dr. Louçã recorre ao que toma por sarcasmo. Pelos vistos, há por aí uns biltres, entre os quais a minha pessoa, que o perseguem e acusam de simpatizar com o sr. Putin.

Tem graça, um Torquemada perseguido. “Perseguições” e alucinações à parte, não preciso das opiniões do dr. Louçã sobre o sr. Putin para formar a minha opinião sobre o dr. Louçã. Dê as cambalhotas que der, Francisco Anacleto não engana: um camaradinha “alternativo” que apenas se distingue dos originais no descaramento com que dissimula, muito mal, o apreço pelo totalitarismo. A vida inteira do dr. Louçã é uma longa exibição de ódio à liberdade, e uma longuíssima vénia aos que a suprimem ou combatem. Por excesso de coerência, ou escassez de vergonha, esteve sempre do lado errado de todas as histórias. Esteve e está: o dr. Louçã lamenta a invasão da Ucrânia com a sinceridade com que lamentava o terrorismo para em simultâneo apoiar os homicidas da ETA.

Extraordinário é o espanto com que ainda se constata as contradições cometidas pelas catequistas, ou metástases, do dr. Louçã (“Chicominions” seria descer ao nível estilístico dele). Uma deputada finta a lei? Ai, mas ela é tão exigente no discurso. Um vereador pratica uma vigarice? Ai, mas ele é do Bloco. O Bloco despede funcionários à bruta? Ai, mas a retórica deles é a oposta. Meus caros, o pior desta gente não é a hipocrisia com que ganham a vida deles, e sim a hipocrisia com que desprezam a morte dos outros. Francisco e as Anacletas são comunistas.