Numa conversa promovida pela Agência Ecclesia sobre a celebração do segundo aniversário do atual pontificado, o jornalista Daniel Oliveira confessa ao Padre Tolentino Mendonça a sua admiração pelo Papa Francisco. E acrescenta: “O que este Papa tem de mais extraordinário é a utilização do exemplo como uma forma de intervenção política.”

Para muitos observadores, Francisco é hoje o ator político mais relevante no contexto internacional. Esta relevância tem sido construída, quer através do gesto, quer da palavra escrita. Todavia, é no sólido alinhamento entre o verbo e a ação que encontramos a identidade deste Sumo Pontífice: um líder cuja autenticidade é reconhecida por crentes e não crentes como sendo pertinente, apesar de muito incómoda, dado que nos obriga a reconhecer o que não queremos ver, em concreto a exclusão, o abandono e a miséria em que muitos vivem. Este é o Papa que veio para unir e não para dividir. Ele recusa a ideia de que o Homem pode aceitar viver num mundo em que o seu semelhante vive excluído e marginalizado. A exclusão, por si só, é fonte de sofrimento e o Papa luta arduamente pela integração de todos os seres humanos.

A mais recente carta encíclica endereça as questões da fraternidade e da amizade social e acarreta fortes implicações para todos os Homens de boa vontade, incluindo aqueles que têm na sua responsabilidade o ensino da gestão. Em face de Fratelli Tutti, podemos e devemos perguntar qual deverá ser o papel das escolas de negócios na formação de gestores e empresários. Julgo que nos é permitido retirar algumas ilações que, não sendo novidade, reaparecem com significado reforçado. De seguida proponho para debate duas principais proposições que decorrem da minha leitura da última encíclica social e que penso que devem ser atendidas nos programas de capacitação empresarial.

O ser humano vem antes do lucro. No filme WallStreet1 , a personagem Gordon Gekko defende o ponto de vista do investidor ganancioso que não olha a meios para cumprir o seu objetivo de obter lucro rápido e fácil: “The point is, ladies and gentlemen, that greed, for lack of a better word, is good.” Esta frase causa uma grande inquietação e desconforto em muitos gestores e empresários. O ganho especulativo posiciona-se num plano diametralmente oposto ao resultado que advém do trabalho do Homem, que requer tempo, perseverança e esforço. Tudo o que o Homem entrega ao trabalho, o trabalho devolve em dobro. O trabalho não oferece ao Homem apenas o seu benefício material, mas dá-lhe na mesma medida a possibilidade de expressar e aperfeiçoar a sua dignidade humana. Quando a ética especulativa se sobrepõe no mundo dos negócios, perde-se a dignidade do ser humano.

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Não podemos ver o lucro como um mal necessário, dado que o lucro não tem conteúdo moral. É neutro, por assim dizer, ou seja, está para além do bem e do mal. Já o caminho pelo qual os gestores chegam ao lucro tem conteúdo moral. Não vale tudo, nem a qualquer preço, pois o lucro não é um fim em si, mas deve ser um meio para alcançar um fim maior.

As empresas precisam de ter lucro. O lucro é o meio a partir do qual a empresa cumpre as suas obrigações fiscais e remunera os seus acionistas. As empresas que têm lucro podem almejar o crescimento, pagam justamente aos seus colaboradores, respeitam o ambiente e os consumidores; tratam os seus fornecedores de forma correta. Desta forma, a empresa contribui para o bem comum e isso fornece sentido para a existência da empresa.

Em qualquer caso, o lucro nunca pode estar acima da dignidade do ser humano, quer seja um cliente, o trabalhador da empresa ou mesmo o trabalhador de uma empresa sua fornecedora. Em qualquer escola de negócios, o primado do ser humano sobre o lucro não pode ser ignorado. Este princípio encontra-se presente na Doutrina Social da Igreja, mas não só. O que aqui está em causa são valores universais que regem a ação de qualquer empresário de bem, independentemente da sua confissão religiosa.

A propriedade exige responsabilidade moral. O direito à propriedade encontra-se consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos2. Porém, em Fratelli Tutti, o Santo Padre retoma o debate sobre a função social da propriedade (118-120) e conclui que o “direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados” (120).

Quando um ser humano não tem o necessário para viver com dignidade, não estão criadas as condições para outro vir reclamar o direito à propriedade. Qualquer pessoa possui direitos inalienáveis e não pode viver humilhado ou ser reduzido a um instrumento cujos fins limitem o seu próprio desenvolvimento. Neste sentido, é necessário aceitar que a propriedade privada não é um direito absoluto e que apenas existe sob forma de uma “hipoteca social”3, sendo que a sua finalidade primeira é estar ao serviço de todos.

Ser acionista de uma empresa é um ato explícito do ser humano que resulta de uma decisão ponderada e livre, mesmo quando a propriedade se esconde por trás de fundos de investimento, de títulos de dívida ou de outros mecanismos mais opacos de investimento especulativo. A decisão de investir numa empresa tem significado moral. Vejamos o seguinte exemplo que nos chega da Noruega.

Constituído a partir das receitas obtidas com a exploração de gás e petróleo no mar do Norte, o fundo soberano Global da Noruega é o maior do mundo e conta com mais de um trilião de dólares em ativos sob gestão, o que equivale a 1,5% de todas as ações das empresas cotadas em bolsa do mundo (cerca de nove mil empresas, dispersas por 74 países). Desde a sua criação, em 1990, que existe um amplo consenso político sobre a forma como o fundo deve ser gerido, alinhando as exigências de rentabilidade com as expectativas mais amplas da sociedade.

O Ministério das Finanças norueguês instituiu um Conselho de Ética independente que tem o poder de decidir desinvestir de empresas que imponham indevidamente custos substanciais a outras empresas e à sociedade no seu conjunto. Este conselho dá a conhecer as expectativas que tem sobre as empresas que compõem a carteira de investimentos e que incluem temas como: direitos humanos, direitos das crianças, alterações climáticas, cumprimento fiscal, políticas de transparência e anticorrupção. Na lista de empresas excluídas podemos encontrar empresas como a Airbus e a Boeing (produção de armas nucleares), a EDP e a ENDESA (produção de energia com base em carvão), a Page Industries e a Formosa Taffeta (violação dos direitos humanos), e a ZTE (corrupção).

Para muitos empresários, o exemplo norueguês é difícil de por em prática, pois exige que em “todo o investimento deve estar-se disposto a renunciar a um benefício de curto prazo para obter um maior, mais tarde”4. Exige, por exemplo, avaliar as dimensões aqui apresentadas, mas também observar: se a gestão está ou não a ser remunerada de forma equilibrada, se a empresa está ou não a desenvolver práticas concorrenciais que prejudicam o bom funcionamento do mercado, se está ou não a remunerar os seus acionistas com recurso a outras fontes que não os proveitos operacionais (como por exemplo o recurso à dívida), e muitas outras práticas que podem ser fonte de mal e, como tal, devem ser erradicadas.

Em Fratelli Tutti, o Bispo de Roma alerta os homens para que quando a sociedade se rege pelos critérios da total liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para os excluídos (109). Por outro lado, Francisco relembra os crentes que para ser pleno não chega adorar a Deus. É igualmente necessário descobrir o amor autêntico e fraternal, abrindo o coração a todos os Irmãos. Este é o dever do gestor e do empresário uma vez que, ao cuidar dos outros, está na mesma medida a cuidar de si. A este respeito, Martin Schlag relembra que o que a Igreja espera da economia e do empresário é que este “produza riqueza, prosperidade e justiça para todos, e não só para alguns”5. Precisamos, mais do que nunca, de uma economia que integre todos os irmãos e não de uma economia que produz excluídos, abandonados e desigualdade.

Do que aqui foi exposto, nada é novo. Fratelli Tutti segue a linha de outras encíclicas sociais — como Rerum novarum6 e Centesimus annus7 — que muito contribuíram para a construção da Doutrina Social da Igreja Católica. A novidade que este texto papal nos oferece reside em constatar o quanto de bem se pode alcançar quando o comportamento fica alinhado com o pensamento. No âmbito do ensino da gestão essa é uma responsabilidade que as escolas de negócios têm nas suas mãos. E não é pouca.

(1) Realizado por Oliver Stone em 1987.
(2) Artº 17 da resolução 217 A da ONU.
(3) Discurso do Papa João Paulo II na solene sessão de abertura da IIIª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em 1979.
(4) Diniz, Raúl (2014). Inspirando líderes: palavras de circunstância. Lisboa: AESE Business School (p. 123).
(5) Schlag, Martin (2017). The Handbook of Catholic Social Teaching: A Guide for Christians in the World Today. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press (p. 79).
(6) Leão XIII (1891).
(7) João Paulo II (1991).