Entre 1986 e 2021, políticos de Lisboa e de Madrid venderam-nos o sonho de uma Europa com livre circulação de pessoas, bens e serviços. Um dos pontos mais realçados desta política foi a integração das economias e sociedades transfronteiriças, apoiadas com fundos generosos como o Interreg e pavoneadas com títulos pomposos como o das Eurocidades. As comunidades transfronteiriças corresponderam em pleno. Hoje, é natural uma família da raia ter um cônjuge nascido em cada um dos lados, os filhos a estudar num país, o emprego dos pais noutro, fazendo compras de um lado, tratando da assistência automóvel de outro (sendo certo que todos se abastecem de gasóleo do mesmo lado, a 1 euro/litro).

Chegamos a 2021 e, indiferentes a tudo isto, Madrid e Lisboa mandam fechar as fronteiras. É-lhes indiferente que haja famílias e empresas cuja vida quotidiana fica completamente impossibilitada. Pouco lhes interessa que, ao longo deste processo de integração, as comunidades gémeas da raia se tenham especializado e, por isso, sejam interdependentes. De um lado há mais restaurantes ou mais empregos, do outro há mais habitação. Enfim, cada um foi oferecendo aquilo em que é mais competitivo e os dois lados passaram a funcionar harmonicamente. Quem vive longe da fronteira não percebe que os 35 anos de integração europeia integraram, efectivamente, as economias locais.

Hoje, um natural de Cevide, a aldeia mais a norte de Portugal, pode percorrer livremente os 759 quilómetros que o separam da bonita Vila Real de Santo António com as suas praias de água amena, mas que nem lhe passe pela cabeça cruzar a ponte de três metros sobre o Rio Troncoso que o separa do lugar espanhol de A Frieira para ir ao café ou à mercearia. A violação desta regra de combate à Covid-19 acarreta-lhe pagar, em Portugal, 200 euros e, em Espanha, 500 euros, os mínimos legais. Em termos de saúde pública não faz sentido nenhum que seja possível viajar livremente para concelhos com elevada incidência do vírus, mas não entre dois lugares cuja presença do vírus é igualmente insignificante. O que está em causa não é a saúde pública, mas sim o poder do Estado central. E o abuso deste poder está a desgraçar centenas de empresas e milhares de postos de trabalho em toda a raia, precisamente desde Cevide à Paradela, a aldeia mais a leste de Portugal, e daí para Sul até Vila Real de Santo António.

O mais ensurdecedor, porém, é o silêncio dos responsáveis locais. Uma breve pesquisa na imprensa mostra movimentos frouxos, protestos simbólicos. O habitual “tudo está a ser tratado nos locais certos” e alguns pedidos de abertura de passagens fronteiriças “na medida do possível”. Pior, há programas especiais para apoio a tudo, mas viu-se algum programa de apoio à economia de fronteira? As populações da raia fazem da fronteira a sua vida e economia: esta não lhes pode ser tirada. A preocupação de obedecer em busca de uma boa classificação para os fundos da bazuca não se estará a sobrepor à urgente defesa do interesse das suas comunidades?

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A população da fronteira tem o direito à abertura das fronteiras, sobretudo porque – manifestamente – não há motivos de saúde pública para as manter fechadas. Não é um direito da treta. É um direito consagrado no artigo 13º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que Portugal e Espanha subscreveram. As comunidades locais e, sobretudo, os seus responsáveis não podem calar mais esta reclamação: abram as fronteiras!

O irónico de tudo isto, é que as autoridades de Lisboa e Madrid, com as suas leis e as suas polícias, fracassam perante a história. Quem percorrer a fronteira um pouco por todo o país, nota que, ali e ali, há carros estacionados em locais onde não há nada que o justifique, automóveis vazios. Não estão abandonados. Pertencem a quem, usando os velhos caminhos do contrabando, passa a fronteira a pé todos os dias e deixa o carro estacionado para seguir viagem para casa ou para o emprego. Os caminhos que durante séculos serviram emigrantes, refugiados e contrabandistas são os mesmos que hoje usa quem queira satisfazer o mais quotidiano dos direitos: trabalhar para ganhar a vida.

Voltaremos, como no Estado Novo, a ter a GNR a cavalo pelo monte em busca de quem cruza a fronteira?