Aceitar escrever sobre AVC é um passo gigante na minha vida. É um tema que me deixa desconfortável, provavelmente devido às memórias que ainda tenho daquele dia, do medo que senti e da confusão que se instalou na minha vida familiar.

Naquela manhã de janeiro de 2017, depois de acordar, embati na porta do quarto, mas desvalorizei. Tinha sido mãe, pela primeira vez, há apenas 18 dias, as noites não eram fáceis e dormia mal. Também não valorizei o facto de me ter engasgado ao pequeno-almoço. Era um sábado, senti vários desequilíbrios durante a manhã e optei por deitar-me após adormecer o bebé.

Recordo-me que levei o portátil para a cama para ver os e-mails, mas acabei por desligar, pois estava com muita dificuldade em manter os olhos abertos. Quando acordei, o quadro mudou completamente. Eu e o meu marido percebemos que o que se estava a passar não era apenas devido ao cansaço.

Tentámos ir pelos próprios meios para o hospital, mas, de forma galopante, comecei a perder a capacidade de andar e com um bebé de colo, não conseguíamos entrar sequer no elevador. Foi quando decidimos ligar para o 112. No Hospital Garcia de Orta (HGO), que pertence à minha área de residência, sendo janeiro um período de muita afluência, a espera pareceu-me interminável.

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As náuseas agravavam-se e a dificuldade em manter a cabeça levantada distanciavam-se do prognóstico de cansaço e de depressão pós-parto apontados no momento da triagem. Aos sinais que já tinha, juntou-se a perda de voz, a inabilidade de me manter em pé e o facto de começar a não conseguir ver. Fiz uma TAC e a médica que me acompanhava optou pelo internamento. Nessa noite, a equipa médica pediu-me para tentar colocar-me de pé para fazer uns exercícios, mas não tive equilíbrio e acabei por cair.

Os dias seguintes foram de muito receio e estranheza. A gravidez correu muito bem, era uma pessoa saudável, nunca tive nenhum problema de saúde, praticava exercício físico. Não encontrava uma explicação lógica para o que me estava a acontecer.

Recordo-me da primeira conversa que tive com o neurologista quando ele foi ter comigo para se apresentar e falarmos um pouco. Na altura, devido ao forte nistagmo [movimento ocular repetitivo e involuntário], não conseguia vê-lo. Apenas conseguia ouvi-lo. Falou de forma muito fontal e perguntou-me se estava capaz de perceber o que ele dizia ou se eu gostaria que ele falasse com algum familiar. Este gesto foi essencial para que criássemos, a partir daquele momento, uma relação de confiança. Sempre na base da verdade.

Seguiram-se muitos exames. Inicialmente, colocou-se a hipótese de se tratar de um primeiro episódio de esclerose múltipla, mas essa acabou por ser descartada. Acabei por ter o diagnóstico de AVC isquémico da artéria vertebral direita. Pequenos movimentos, como baixar a cabeça, provocavam-me vertigens. Tudo tinha de ser feito com ajuda de alguém.

Há marcas que ficam. Como o medo de ficar dependente com um bebé tão pequenino em casa, que terá sido o meu motor para a recuperação. O sofrimento que a minha família e amigos viviam, mas que não queriam demonstrar. Lembro-me de chorar apenas duas vezes durante todo o processo, uma vez à noite e no dia que permitiram a visita do meu bebé, dez dias depois do AVC. Pude vê-lo e pegar nele. E, se por um lado, foi uma enorme felicidade, por outro, tinha uma grande vontade de voltar para casa e ser capaz de voltar a cuidar do meu filho.

Seguiram-se pequenas vitórias. Quando a visão começou a estabilizar senti uma enorme felicidade. Acordei um dia e consegui ver o número da porta do meu armário. Parece algo insignificante, mas foi o suficiente para pedir para marcarem o número de familiares no meu telemóvel para contar a novidade. Fiquei muito feliz.

Numa das visitas médicas, o neurologista fez questão de me explicar que a visão trémula provavelmente iria voltar, mas para não desanimar.  Tudo fazia parte de um processo de recuperação. Consecutivamente, a visão foi estabilizando com intervalos mais longos, permitindo-me ver as pessoas e o trânsito na A2 da janela do meu quarto.

Os excecionais profissionais do HGO ajudaram-me muito. Toda a equipa de enfermagem e auxiliares que, durante o dia e noite, traziam a bomba de aleitamento e armazenavam para o biberão do meu filho. Era importante manter este elo com o bebé, comigo ausente de casa. Recordo muito o carinho demonstrado e frases como: Vai recuperar, veja o que já recuperou nestes dias (…). Era tudo o que eu precisava de ouvir.

Numa fase posterior, algumas enfermeiras, já depois terminarem o turno, iam ao meu quarto levantar-me e caminhavam comigo nos corredores. Recordo-me de um enfermeiro que, num sábado de manhã, preparou a sala e organizou a visita do meu filho. E da auxiliar, que no meio da azáfama dos pequenos-almoços parou no meu quarto para me dizer: Já volto aqui para ajudá-la. Quer que lhe faça uma trança no seu cabelo? Era um dia importante. Ia finalmente ver o meu filho.

Física e mentalmente, a fisioterapeuta Cláudia e a equipa de reabilitação do hospital foram muito importantes. A harmonia entre as palavras carinhosas nos momentos em que vacilava e o grito “vamos’’, quando tive medo de cair na plataforma, de subir ou do simples ato de descer escadas. Ou, daquele dia em que me disse: Anabela, hoje vamos correr. Eu respondi que ainda não estava capaz e a Cláudia, num tom forte, disse-me: – “Vais correr, eu não te deixo cair’. Corremos as duas com o apoio da sua mão para me corrigir sempre que havia algum desequilíbrio, nunca permitindo que eu congelasse devido ao medo que sentia.

A partir desse momento, senti que começava a recuperar e a ganhar a confiança de que precisava. Até então, questionava imensa coisa. “Como era possível não conseguir subir escadas ou subir um lancil do passeio se o meu cérebro sempre soube como o fazer?”. Comecei a transferir os meus episódios de raiva para o processo de recuperação. Já em ambulatório, a equipa de fisioterapia definiu um plano de exercícios para fazer em casa. Fi-lo com muito rigor, também entusiasmada com a recuperação que era visível aos olhos de todos.

O regressar a casa representou uma nova etapa. Foi preciso criar rotinas básicas para viver a normalidade de um pós-parto. Pegar no bebé, dar-lhe banho… tudo era feito com imensa calma. Nas primeiras semanas, não me era possível dar colo em pé e não o levantava do berço pois ainda estava bastante descoordenada ao nível de movimentos e todas as tarefas exigiam imenso cuidado para não correr o risco de deixar o bebé cair. O meu equilíbrio mental, nesta fase, estava muito dependente da família fantástica que me rodeou. Nunca me faltou apoio.

Acredito profundamente que é fundamental as pessoas e os profissionais de saúde estarem conscientes de que os AVC acontecem em pessoas saudáveis e jovens. Foi o meu perfil de jovem saudável que conduziu a um diagnóstico mais demorado.

Numa consulta de acompanhamento, o neurologista especialista em AVC, no final da consulta após rever todos os exames feitos, aconselhou-me “a ir viver feliz”. O ocorrido foi um azar e a probabilidade de voltar a acontecer seria igual à de qualquer outra pessoa.

Sequelas? Algumas. Aprendi a viver com elas. Provavelmente, a falta de equilíbrio em alguns movimentos é aquela que me aborrece mais no dia a dia.

Medo de voltar a acontecer? Existe! Mas, com o passar do tempo, esse receio apazigua. Inicialmente, é muito presente e praticamente inevitável, mesmo que não queiramos dizê-lo.

Gostava de voltar a sentir a força muscular que tinha, de não ter os episódios de falta equilíbrio, de não sentir dor no lado esquerdo do corpo com temperaturas mais frias ou mais quentes. O que ganhei com este episódio? Seguramente, força emocional.

Depois do AVC, três anos mais tarde, voltei a ser mãe de outro menino. No dia em que dei a notícia de que estava grávida, a minha neurologista ficou apreensiva. Fizemos análises específicas e, em conjunto com a opinião da obstetra, percebemos que tudo iria correr bem. Assim foi. Tive direito a uma gravidez e a um pós-parto calmos, como todas as mamãs devem viver. Nasceu um bebé lindíssimo em plena pandemia de Covid-19 e sou hoje uma mãe muito feliz e orgulhosa dos meus dois filhos.

Anabela Pereira é licenciada em Comunicação Social, trabalha num laboratório farmacêutico, onde desempenha a função de assistente do Departamento Médico e da Área Regulamentar. Foi mãe pela primeira vez há sete anos e teve um AVC 18 dias depois. Voltou a ser mãe depois deste episódio.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

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