Quando era muito novo, em casa, éramos dois sportinguistas, e cinco benfiquistas incluindo o meu pai e eu. Na altura, a época áurea do Benfica de 1966, o velho Estádio da Luz estava rodeado de terrenos esburacados, um problema quando chovia. O futebol e o que à volta dele circulava era um mundo saudável.  Nos estádios, nas esplanadas, nos cafés e em casa seguia-se o futebol pela rádio. Num país, deserto de eventos e de emoções, o futebol dava, semanalmente, alegrias e tristezas, e tópico de conversa para os dias seguintes. O plantel benfiquista do Eusébio, do Simões, do Torres, pouco mudava de ano para ano e era muito difícil chegar ao estádio. A minha relação com o futebol mudou, como em relação à filatelia, quando se tornou um negócio, muito pior no caso do futebol, que passou a envolver transferências milionárias todos os anos (com os inevitáveis agentes, advogados, uso de offshores), merchandising milionário, crimes de corrupção (na UEFA e em vários países incluindo Portugal), salários obscenos pela sua magnitude. Não por acaso os crimes fiscais, os mais fáceis de provar foram vários nos últimos anos (Messi e Ronaldo entre outros).   Dirão os mais ingénuos e mais liberais, que este desenvolvimento do futebol foi reflexo do funcionamento do mercado. Uma crescente procura que gerou a sua própria oferta. Em parte foi, mas não só.

Há sobretudo duas questões que me interessam no futebol. Uma, de natureza mais sociológica e psicológica é tentar perceber porque é que desportos como o futebol (e o rugby), se disseminaram tão rapidamente na Europa a partir de Inglaterra e têm hoje o peso que têm na Europa e no mundo. Felizmente, que os trabalhos do grande sociólogo Norbert Elias e seu discípulo Eric Dunning (*) deram uma resposta satisfatória ao que se pode designar por sociologia das emoções e do desporto. Em sociedades em que o monopólio da força e da violência foi progressivamente centralizado nos Estados, esse potencial de agressividade e de violência, por vezes existente ao nível de certos estratos sociais (a burguesa e aristocracia da época) foi progressivamente transferido de forma civilizada para o desporto em que um longo “processo civilizacional” foi refinando as regras de que é exemplo o boxe, com a introdução das luvas, a distinção entre diferentes categorias, etc. Há duzentos anos, como hoje, os desportos, e o futebol em particular, cumprem uma função social importante, para onde são canalizadas emoções individuais, das mais nobres às mais primárias. Do ponto de vista coletivo, não haverá dúvida que o futebol contribui para um sentido de identidade nacional. Até aqui tudo bem. Haverá certamente muita gente, ainda nas próximas décadas, a gravitar em torno do futebol.

A outra questão, que me interessa mais, é saber qual tem sido e qual deve ser a atitude do poder político em relação ao futebol-desporto e em relação futebol-negócio. Não tenho grandes dúvidas em que tem havido um assédio do mundo do futebol aos políticos. Isso manifesta-se em ofertas de bilhetes para jogos, nos jantares que os grandes clubes oferecem aos deputados, nos convites que são feitos para comentadores, para integrarem comissões de honra a candidaturas, etc. Claro que a coisa funciona nos dois sentidos. A popularidade do futebol, também leva políticos a mostrarem-se que estão, ou querem estar, ao lado do povo. Os líderes dos clubes querem apoio da massa associativa para serem eleitos, do mesmo modo que os líderes políticos precisam da massa de cidadãos para os elegerem. A emergência do futebol, em relação a toda a outra imensidade rica de desportos, que são discriminados negativamente pelo poder político, mas em que somos exímios (judo, atletismo, ginástica, remo, etc.) deve-se apenas a isto. Tem muito mais “clientes” que são votantes. Isto cria um caldo de cultura entre o poder político e o poder desportivo, bem alimentado por certos media, que cria a asfixia futebolística em que vivemos, distorce os apoios públicos favoravelmente ao futebol profissional, deixando como parentes pobres não só todo o desporto amador como as outras modalidades desportivas. Deveria, obviamente, existir uma maior distanciação do futebol em relação à política e um tratamento mais igualitário das vária modalidades desportivas e do desporto amador.

O caso de Luís Filipe Vieira é obviamente muito relevante para todos nós. Para os benfiquistas é relevante se, como alega o Ministério Público (MP), tiver desviado fundos públicos do Benfica para os seus negócios privados. Para todos os contribuintes, se se provar, como alega o MP, que conseguiu montar um esquema para recomprar parte da dívida de uma empresa sua, a Imosteps, ao Novo Banco (54,3 milhões), que após ser comprada por uma “intermediária” (o fundo Davidson Kempner) com grande desconto, acaba nas mãos de um fundo de um alegado testa de ferro de Vieira: o “rei dos frangos” José António dos Santos por apenas 9,1 milhões de euros. Esta, como todas as imparidades do Novo Banco, vão acabar por ser pagas pelos contribuintes e tudo indica que o limite para a injeção do dinheiro de todos nós, não são apenas os 3,96 mil milhões de euros do mecanismo de capital contingente, se as coisas correrem mal. No documento oficial da Comissão Europeia de ajuda de Estado pode ler-se nos pontos 143 e 144 referente a um cenário adverso: “Tendo em conta as perdas em todas as carteiras do Novo Banco em tal cenário e a situação de capital inicial e compensando o provisionamento atual, a contribuição de capital da Lone Star, os lucros de pré-provisão em tal cenário, bem como o total de 3,89 mil milhões de euros de contribuição de capital ao abrigo das Medidas 1 e 2, existem necessidades de capital adicionais que são potencialmente elevadas, mas permanecem dentro de limites claramente definidos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No entanto, em tal cenário, seria altamente improvável que a Lone Star fornecesse capital adicional ao Novo Banco.” Itálico nosso.

No caso de Vieira espero que o Ministério Público e os tribunais façam bem o seu trabalho, não apenas por uma questão de justiça, mas pelo respeito com os atuais e futuros cidadãos contribuintes que terão de pagar o fardo de uma dívida pública que teima em não parar de aumentar.

*Norbert Elias e Eric Dunning “A Busca Da Excitação: Desporto e Lazer no Processo Civilizacional” Edições 70 (tradução de Quest for Excitment: Sport and Leisure in the Civilizing Process, Basil Blackwell)