Alguns dos meus amigos benfiquistas e grande parte do universo Benfica exulta com a possibilidade da contratação do Gelson Martins e do Bruno Fernandes, ainda para mais a “custo zero”.
Muitos até – a começar pelo Presidente LFV – falam em “vingar” o Verão quente de 1993, em que todos nos recordamos da maneira infame como o nosso eterno rival se aproveitou das nossas dificuldades para nos dar um golpe que julgava mortal, e que só não foi maior graças ao verdadeiro benfiquismo de alguns dos abordados, como Rui Costa, que nunca vacilou, ou João Pinto, que vacilou (pressionado) mas não caiu.
Lembro-me bem do pavor com que abordava a banca dos jornais de manhã para verificar, pelo canto do olho, com medo do que ia encontrar, qual a humilhação do dia, qual o craque que tinha partido.
E lembro-me bem de pensar que só a inveja, o ressentimento e a raiva ao Benfica podiam determinar aquela atitude dos então dirigentes sportinguistas. E de pensar, com orgulho no meio do desespero, quão diferente é o glorioso Sport Lisboa e Benfica, que trilhou sempre o seu caminho contra todas as dificuldades, mas sempre sem espezinhar ninguém, congregando em vez de desunir, através do valor e suor dos seus atletas e com um sentimento tão forte de crença e comunhão clubística – não é por acaso que a sua divisa é et pluribus unum – que fizeram dele um clube ímpar sem necessidade de inimigos externos para se impor no panorama desportivo nacional e até internacional.
E ímpar especialmente nas atitudes dos seus dirigentes. Durante muito tempo o Benfica foi o modelo, o exemplo a seguir e é assim que devemos continuar a ser.
É por isso que me choca a ideia da “vingança”, agora que o adversário está de rastos, dirigidopor um lunático. Não se esqueçam os benfiquistas que vivemos um fenómeno parecido há não muito tempo.
A verdadeira “vingança” serve-se dentro do campo, e manifesta-se mostrando a nossa superioridade moral de não fazermos aos outros aquilo que eles premeditadamente nos fazem e que atenta contra a boa ética desportiva e uma sã rivalidade. Só assim não seremos como eles, só assim faremos a diferença e daremos o exemplo.
Afinal, como aconteceu naquela época de 1993-94 em que todo o sofrimento que todos nós benfiquistas passámos foi redimido pouco tempo depois, da forma e no local próprios. Dentro do campo, na casa do adversário, e pela arte e orgulho de todos os nossos jogadores, as nossas papoilas saltitantes. Com aqueles 6-3 em Alvalade, numa noite gloriosa do João Pinto, o Benfica mostrou, uma vez mais, a sua raça, a sua têmpera de que é feito desde a sua criação e serviu, a quente, a sua vingança. Da única forma desportivamente admissível.
Mas convém ainda recordar que o episódio do verão de 1993, foi apenas mais um, e no fim de uma série de outros, todos no mesmo sentido.
Tudo começou em Maio de 1907, quando sete ou oito dos nossos valorosos jogadores, à míngua de campo para jogarem e de condições para se equiparem e desequiparem,
resolveram ir à sua vida, optando alguns deles por ingressarem no recém constituído SCP, que para além de campo próprio, tinha também balneários (e chás dançantes).
Há que reconhecer que não se tratou de um ato hostil daquele que viria a ser o nossa maior rival, até porque então mais rival era o CIF, que integrava jogadores ingleses, em contraste com o então Sport Lisboa que se orgulhava de só fazer alinhar jogadores portugueses, tradição que conseguiu manter por mais de setenta anos.
Eram os primeiros tempos do pontapé na bola, de desorganização, da baliza às costas e ainda sem a clubite, os jogadores só queriam era jogar. Daí a debandada.
Mas não deixa de ser sintomático e revelador que este primeiro episódio inicia a tradição do trânsito dos jogadores entre Benfica e Sporting se fazer sempre num só sentido, e na maioria das vezes (como em 1993) ao arrepio dos mais elementares deveres de respeito pelo adversário, de boa conduta e sã rivalidade.
E não deixa também de ser revelador da têmpera benfiquista, que haveria de moldar toda a nossa vida associativa, a resistência a tal debandada, sob a batuta de Cosme Damião e Félix Bermudes, a ponto de o SLB ter conseguido congregar o número necessário de jogadores para, com espanto geral, se conseguir inscrever no campeonato de Lisboa, época de 2007-2008.
Seguiu-se em finais de 1914 a contratação pelo Sporting de Artur José Pereira em episódio que convém recordar: Artur José Pereira, considerado o melhor jogador dos anos 10 a 20 do século XX, sentia-se, por esse facto, dispensado de cumprir o plano de treinos imposto pelo Clube. Após tensão e alguma polémica, foi AJP suspenso pela Direção do Benfica pelo prazo de seis meses. Pois bem, a Direção do Sporting, mesmo depois de ter sondado qual a situação do jogador e de saber que o mesmo estava suspenso por motivo disciplinar, não hesitou em contratá-lo, dando-lhe mesmo uma retribuição mensal de 36$00 e o privilégio de banho quente depois dos jogos. AJP foi assim o primeiro jogador remunerado, em plenos tempos de amadorismo que haveriam de se manter por muitas décadas.
O mesmo aconteceu com Boaventura da Silva, jogador que estava suspenso por falta de pagamento de quotas e que acabou no Sporting depois do CIF, sabendo da sua ligação ao Benfica, o ter, por essa razão, recusado.
A estes dois juntou-se ainda um terceiro jogador titular da equipa principal do SLB, Augusto Paiva Simões.
É necessário dizer que na altura era prática comummente aceite não se recrutar jogadores de outros clubes sem o assentimento destes e que, por essa razão, pouco tempo antes o Benfica havia recusado contratar Jaime Cadete, Sebastião Campos e Artur Augusto, jogadores do Sporting.
Foi este episódio, em finais de 1914, que marca verdadeiramente o nascimento da forte rivalidade entre Benfica e Sporting. E repare-se como na sua génese estão as contratações, contra todos os princípios de boa-fé e de ética desportiva, de dois futebolistas.
Mas também aí a “vingança” do nosso Clube foi servida dentro do campo: no primeiro jogo entre as duas equipas a seguir àquelas contratações – em que o Sporting teve o impudor de cometer a braçadeira de capitão a AJP, o Benfica ganhou por 3-0.
Novo e semelhante episódio em 1918: Alberto Rio, um dos melhores jogadores do Benfica, foi também suspenso por seis meses, por faltar sem justificação a alguns jogos do Clube. Mais
uma vez, o Sporting, sabedor desse facto, não hesitou em contratar o jogador. O escândalo foi tal que no primeiro jogo em que AR apareceu equipado à Sporting o público indignou-se de tal forma que ele teve que abandonar o campo. E a verdade é que a sua estrela empalideceu, nunca mais foi o jogador que tinha sido e acabou por sair para, juntamente com AJP, fundar Os Belenenses em 1919.
Foi de tal forma indigna a atitude do Sporting, que um dos seus mais prestigiados Diretores, Mário Pistachini, se demitiu em desagravo e escreveu uma carta à Direção do Benfica a pedir desculpa.
Em 1919 e 1920 o Benfica haveria ainda de sofrer as sangrias no seu plantel causadas pela fundação do Casa Pia – onde logo ingressou Cândido de Oliveira — e do Belenenses, mas continuou o seu caminho, sem desforras ou desagravos, sem “vinganças”. E esteve muito anos afastado dos títulos (só em 1932 voltaria a ganhar o Campeonato de Lisboa), mas não quebrou desportivamente nem violou os seus princípios e a sua forma de estar.
E é esta uma das matrizes do Benfica, o respeito pelos outros e pelos adversários, para além da sua enorme democraticidade e popularidade. Ignorar isto e contratar Gelson e BF é dar um pontapé no património histórico e na cultura do clube, em troca de uma mesquinha e pouco digna vingança.
Nunca o Benfica em condições semelhantes se prevaleceu da situação débil dos seus principais adversários para contratar jogadores ou ex-jogadores destes. E não se diga que as situações são diferentes pelo facto de Gelson, Bruno Fernandes, ou qualquer outro, ter previamente rescindido.
E seria inaceitável fazê-lo agora por populismo, para agradar às massas e tentar fazer esquecer a má época futebolística.
Se o Benfica conseguir resistir a contratar os jogadores que agora rescindiram com o Sporting, e o fizer com convicção e não por qualquer oportunismo, manter-se-á fiel à sua matriz, dará um grande exemplo e marcará a diferença pela elevação da sua atitude, e, não temos duvidas, lançará sementes para um futuro melhor dirigismo, que tanto tem faltado ao futebol português.
Sócio do SLB no 4349