Quem me conhece saberá que estou longe de ser um tipo conservador. Mas é um pouco mais do que isso. Para mim ser conservador é sinal de inteligência reduzida, já que se as coisas mudam é porque haverá uma razão para tal. Até podemos não concordar com as razões, mas ser diferente não é certamente razão. Daí até embirrar com pacotes moralistas, filosofias da treta e sociologias fajutas é um passo pequeno. E quando me apresentam uma razão que se funda em algo sólido, adoto imediatamente a causa da transformação. Assim, quando alguém me diz que tem orientações sexuais diferentes daquelas que eu esperaria, a minha aceitação funda-se na solidez de um “oh meu, quero lá saber!!!”. Já quando alguém se propõe a ensinar aos nossos filhos as virtudes das “Epistemologias do Sul” usando as nossas universidades, o bom nome delas e o nosso dinheiro, aí a minha recusa é imediata. Não pelo facto de nada disso ser conhecimento, mas porque destrói conquistas de séculos de gente séria que trabalhou e lutou para que o saber chegasse a todos nós. Se fizessem isso em casa, sem usarem o nosso capital, aí seria eu a defender o direito de qualquer um a ser ignorante.
O que me traz ao caso do fim dos trabalhos parlamentares. Um grupo não tão pequeno de deputados da nação entendeu requerer ao Tribunal Constitucional que considere como inconstitucional um artigo de uma lei que atribui ao estado a promoção do direito à autodeterminação do género nas escolas de todos os graus de ensino. Não me vou debruçar sobre as questões da constitucionalidade do artigo em causa, até porque sempre achei que em Portugal a constituição é como o Natal: é aquilo que um homem quiser. No entanto, não vou deixar de falar dos factos e das construções em cima dos factos e, para poder parar já de ler se lhe apetecer, adianto-lhe que considero a questão do direito à identidade de género uma perfeita aldrabice que destrói décadas de trabalho de gente séria.
Note-se que não estou a dizer que não haja quem, pelas razões que quiserem inventariar, sejam elas psicológicas, biológicas, sociais ou mera mania, considere que a natureza foi de alguma forma madrasta e lhe atribuiu o género errado. Deixem-me dizer, uma vez mais, que o fundamento do “quero lá saber” funciona aqui perfeitamente. A pessoa pode sentir-se mais homem, mais mulher ou mais periquito que isso, a mim, afeta-me zero. Mais, acredito que haja quem sofra de imperativos físicos para tal e, independentemente disso, vai encontrar em mim quem defenda o seu direito a ser o que bem entender e quem meta o ‘corpo às balas’ se estas vierem na sua direção para impedi-lo de ser o que quiser. Homem, mulher, gordo, magro, preto, branco, azul, o que lhe apetecer. Todas as opções nos merecem igual respeito.
Agora, sociedade não é o que se passa dentro das pessoas, é o que se passa entre as pessoas. O respeito que eu possa ter pela diferença dos outros não constitui, em mim, uma obrigatoriedade de o aceitar para mim. Não porque me caíssem os parentes na lama, mas porque os factos me impõem, também, a aceitação do que não é diferente. E é aqui que a conversa do trabalho de décadas entra. A aceitação do que não é diferente não é nada que esteja garantido, longe disso.
Vou dar um exemplo ao lado para me fazer entender. Ter a cor de pele com que se nasceu, que é algo sustentado pelos factos, está longe de ser algo que seja aceite com naturalidade. Faz parte do ser humano, não é nada de especial, não é determinante em nada daquilo que fazemos. E, no entanto, a pouca aceitação que tem foi conquistada ao longo de séculos pela luta de centenas de pessoas que deram suor e sangue por isso. E cor de pele é “facto”, as pessoas nascem com ela, como nascem com orelhas.
Se olharmos para os lamentáveis episódios mediáticos dos últimos tempos no que à cor da pele diz respeito, seria compreensível ter gente a autodeterminar-se como branco. Imagine-se que eu era preto e amanhã autodeterminava-me branco, por mais estúpido que isto possa parecer. Para além do facto de isso ser irrelevante para a forma como os outros me viam e, consequentemente, para o respeito que me atribuíam, tal em nada contribui para o respeito que nos merecem todas as pessoas independentemente da cor da pele. Bem pelo contrário. Há uma luta de séculos pelo respeito pela cor da pele a considerar e que é antagónica com a obrigatoriedade da aceitação da mudança da cor da pele (se isso fosse minimamente relevante). Imagine-se que precisávamos mesmo de fazer quotas para pretos. Que sentido isso faria se eu me pudesse autodeterminar preto perante o estado? Claro que temos de admitir que existem casos extremos em que a pessoa precisa mesmo de mudar a cor da pele, mas temos uma sociedade que sabe suportar esses casos promovendo as exceções.
Vamos agora à questão do género e vamos aceitar, por razões de argumento, que eu, cidadão, sou obrigado a aceitar o direito alheio à autodeterminação do género. Obviamente, não posso negar os direitos subsequentes que daí advêm. Se aceito, por hipótese, que o Cristiano Ronaldo se autodetermine como mulher isso é fantástico, porque quando deixar de jogar na seleção masculina, pomo-lo a jogar na feminina e ganhamos tudo. Agora que achou divertida (ou interessante) a hipótese, deixe-me dizer-lhe que é exatamente o que está a acontecer nos EUA, onde o desporto escolar assume uma importância superlativa devido ao esquema que conjuga bolsas de estudo e desporto competitivo. O facto de se impor o direito à autodeterminação de género faz com que as provas femininas de atletismo, por exemplo, estejam a ser dominadas por ‘meninas’, que resultaram da autodeterminação de género de uns marmanjos carregados de músculos que fizeram um totó no cabelo.
Vamos ficar apenas no exemplo do desporto senão isto fica do tamanho da Bíblia. Eu ainda sou do tempo em que as mulheres não tinham acesso a todos os desportos, não havia maratona feminina, sabre feminino, salto à vara feminino, futebol feminino, hóquei feminino. Não eram desportos para meninas. No desporto, como em quase tudo na vida social, as mulheres tiveram de conquistar o espaço e o direito a participar em modalidades que se consideravam que não eram adequadas a “seres frágeis”. Se eu me posso autodeterminar como mulher, aquilo que vai acontecer é que as mulheres vão ficar restritas à ginástica rítmica porque vai deixar de fazer sentido haver 400m planos para homens e 400m planos para uns marmanjões de totó que não tiveram mínimos para entrar na prova masculina.
Enfatizemos que nada disto impede que cada um de se autodetermine naquilo que quiser e que o respeitemos na mesma. O que isso não pode implicar é que se confunda o respeito que eu tenho que ter porque “quero lá saber”, com a obrigatoriedade da sua aceitação em prejuízo dos outros. O caso do desporto foi escolhido porque as situações que a questão da identidade de género já está a gerar são revoltantes. Mas podemos aplicar isto a quase tudo. A aceitação do que é imposto pela natureza está longe de estar garantida, o que significa que ainda temos de defender aqueles que nasceram pretos, mulheres, coxos e azuis. Essa tem que ser a nossa luta e não a de impormos legalmente artificialidades de poderem ser todos homens, brancos e altos porque isso, obviamente, anula a defesa das diferenças naturais. Nem percebo como é que isto não é óbvio para os legisladores (perceber, percebo, mas isso…).
Vai haver quem precise mesmo desse direito e dessa obrigatoriedade? E não temos mecanismos para satisfazer esses casos? Claro que temos. Nesses casos estou certo de que saberemos atuar, como sabemos atuar em quase todas as situações de exceção. A pergunta que faço é se nesses casos estamos mesmo a falar de uma autodeterminação ou não?
A questão da constitucionalidade da lei e do pedido dos deputados deixo-a para quem acha que a constituição da república portuguesa tem utilidade. Nem sei o que vão fazer aos 5 artigos que falam de ‘mulher’, se ‘mulher’ pode ser quem queira e o tenhamos que aceitar. Mas gostava que os “teóricos” da identidade de género entendessem a asneira que as suas manias pseudocientíficas estão a provocar. De resto, sejam quem quiserem que eu farei o mesmo. Estou até a pensar autodeterminar-me passarinho e exigir do Parlamento a revogação da Lei da Gravidade.
(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador